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Direito Penal e Autorregulação Regulada: o espaço do Criminal Compliance

Por Adriane da Fonseca Pires

Considerando-se, na perspectiva da criminalidade contemporânea, que, no exercício da atividade empresarial, as pessoas jurídicas têm sido utilizadas para a prática de delitos, ao Estado se coloca o desafio de enfrentar as novas condutas nascidas em um contexto econômico globalizado.

Dentre as ferramentas utilizadas para tanto se encontram a imposição e a regulação de padrões de conduta a serem seguidos por indivíduos e organizações. Assim, destaca Renato de Mello Jorge Silveira, “trabalha-se, no âmbito penal econômico, com um estímulo à empresa não cometer ilícito, autogerindo-se”[1]. Trata-se do que se denomina autorregulação regulada (enforced self-regulation), também chamada de corregulação, que “diz respeito a uma forma de regulação estatal do mundo empresarial, subordinada a fins ou interesses públicos pré-determinados pelo Estado […] no interesse em reorientar sua atuação por um intervencionismo à distância”[2].

Apontam-se como vantagens da autorregulação regulada no Direito Penal Econômico em relação ao uma regulação estatal direta ou a mecanismos de mercado: a capacidade superior que tem a própria empresa para, em um contexto de atividades mais complexo, avaliar a informação econômica mais relevante, além da maior capacidade de os agentes da pessoa jurídica de vigiar e regular suas próprias operações[3]. A finalidade não é outra que não a facilitação da apuração da autoria delitiva no âmbito empresarial.

Essa corregulação estatal e privada, cujo exemplo mais evidente, nos dias atuais, é a instituição de programas de compliance (cumprimento) como estratagema de vigilância no âmbito da empresa, “se converteu em uma dinâmica característica da sociedade de risco”[4] com a transferência de parte da responsabilidade pela fiscalização e controle de eventuais desvios na condução dos seus negócios às próprias empresas ou a terceiros. O compliance, ou seja, “o cumprimento de normas regulamentadoras, expressas nos estatutos sociais, nos regimentos internos e nas instituições legais do país”[5], na perspectiva criminal – criminal compliance – tem um caráter nitidamente preventivo de responsabilização penal das empresas. A partir da verificação de riscos previsíveis, busca-se a adoção de medidas necessárias à mitigação dos mesmos. Giovani Saavedra ressalta o seguinte paradoxo: “a sua concretização, porém, ao invés de diminuir as chances de responsabilização, crias as condições para que, dentro da empresa ou instituição financeira, se forme uma cadeia de responsabilização penal”[6]

O criminal compliance está intimamente vinculado à responsabilização criminal das corporações, daí a dificuldade de adequação a um sistema como o brasileiro, onde a responsabilidade criminal da pessoa jurídica é uma realidade apenas em relação aos delitos ambientais. No ordenamento jurídico brasileiro, com o advento da Lei 9.613/98[7], as obrigações de compliance, impostas a pessoas físicas e jurídicas, passaram a ter relevância penal inseridas na política de gerenciamento da prevenção à lavagem de dinheiro.

Em um cenário de autorregulação regulada há espaço para o debate acerca do espaço de legitimidade da intervenção penal (ultima ratio). A doutrina espanhola, mais avançada nessa discussão, tem importantes reflexões a serem consideradas. O professor Ivó Coca Vila, da Universidade Pompeu Fabra, ao analisar os efeitos jurídico-penais dos programas de compliance no direito penal espanhol trabalha com três grupos de efeitos[8]: (a) o de mitigar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, haja vista a previsão legal (no CP espanhol) de atenuação da pena; (b) a possibilidade de o estabelecimento de programas de cumprimento ser considerado elemento constitutivo do injusto da pessoa jurídica (o delito consistiria no ato de não se autorregular de forma eficaz, a defeituosa configuração de seu âmbito de organização), e (c) a possibilidade de codeterminação da responsabilidade penal das pessoas físicas no marco da delinquência da empresa.

A partir disso, pergunta-se: qual o papel da auttorregulação na integração dos tipos penais?

No trabalho acima citado, o professor Coca Vila[9] pontua três possíveis “âmbitos de integração”: (a) a existência de programas de compliance poderia exercer um importante papel em relação aos delitos culposos, especialmente na determinação da vencibilidade ou da invencibilidade do erro, além de auxiliar na aferição do nível do risco permitido; (b) a observância aos deveres de compliance teria um papel de integração dos tipos penais em branco, forma de tipificação por excelência dos delitos econômicos, além de poder, nos delitos omissivos impróprios, delimitar as posições de garantia (autoria), e (c) o auxílio na determinação do caráter inevitável do erro de proibição. Por fim, considerando que na definição de compliance já se exclui a noção de autorregulação (posição minoritária da doutrina espanhola), leciona que:

“Então se define o Compliance como todo aquele conjunto de medidas a ser adotada por uma empresa para assegurar-se que, em sua atuação, não vá infringir o Direito. Entendido assim, os Programas de Cumprimento são a ferramenta fundamental para a positivação das medidas necessárias, mas em todo o caso, para atuar conforme um direito já dado, que, como não poderia ser de outra maneira, no âmbito do Direito penal, é público”[10].

Com isso se quer destacar que, observadas as diferenças entre os ordenamentos jurídicos brasileiro e espanhol, bem como os avanços dogmáticos da doutrina espanhola, o que se deve estabelecer como premissa é que o descumprimento das obrigações de compliance não pode, por si só e de forma automática, importar o reconhecimento da responsabilização criminal tanto de pessoas físicas como de entes coletivos.  O juízo de tipicidade penal[11] não prescinde da observância dos elementos conformadores dos tipos comissivos ou omissivos impróprios, observadas as peculiaridades dos mesmos.


[1]SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; Saad-Diniz, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 72.

[2]COCA VILA, Ivó. ¿Programas de Cumplimiento como forma de autorregulação regulada? In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; FERNÁNDEZ, Raquel (Orgs.). Criminalidad de Empresa y Compliance. prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 43-75, p. 51.

[3]BERINI, Arturo Gonzáles de León. El criminal compliance em la reforma norteamericana de la Dodd-Frank Act. In: SILVA SÁNCHEZ (Org.) Criminalidad de empresa y compliance: prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013, 77-110, p. 79.

[4]SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; Saad-Diniz, Eduardo. Ob. Cit., p. 78.

[5]ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 141.

[6]SAAVEDRA, Giovani A. Reflexões Iniciais sobre criminal compliance. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, a. 18, n. 218, p. 11-12, jan. 2011, p. 11.

[7]As obrigações estão descritas nos artigos 10 e 11 da Lei 9.613/98 (BRASIL. Presidência da República. Lei 9.613, de 03.03.1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens […]. Brasília, 03 mar. 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9613compilado.htm>. Acesso em: 20 set. 2015).

[8]COCA VILA, Ivó. Ob. Cit., p. 65-66.

[9]COCA VILA, Ivó. Ob. Cit., p. 67-68.

[10]COCA VILA, Ivó. Ob. Cit., p. 70.

[11]A tipicidade penal possui três dimensões: a formal (conduta, resultado e nexo de causalidade), a material ou normativa (juízos de desvalor da ação e do resultado), e subjetiva (dolo e outros elementos subjetivos do tipo).

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Adriane da Fonseca Pires

Servidora Pública Federal (Analista Judiciário). Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Público.

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