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Direito Penal e Compliance: o necessário diálogo com a economia


Por Rafael Guedes de Castro 


No primeiro artigo da presente coluna que nos propusemos a compartilhar, as notas introdutórias sobre o tema “Direito Penal e Compliance” apontaram que o compliance representa um novo objeto de trabalho da ciência jurídica e seu conceito deve ser delimitado no sentido de discutir a necessidade de antecipar riscos no âmbito da atividade econômica empresarial que podem culminar na responsabilidade penal. Ainda, foi importante observar que o criminal compliance não se trata de um tópico da dogmática penal, mas sim de um instrumento de política criminal de prevenção.

Ocorre que todo o debate acerca da necessidade de gerenciamento e prevenção do risco em matéria criminal, necessariamente passa pela interlocução com a economia. No mês de agosto de 2007, eclodiu, a partir dos Estados Unidos da América, uma das maiores crises econômicas da história do capitalismo. A concessão de empréstimos hipotecários de alto risco no setor imobiliário, denominado de “sub-prime”, expôs, de forma jamais vista, a fragilidade e a insegurança do sistema financeiro global. Os riscos oriundos das operações realizadas no mercado financeiro foram amplamente questionados, visto que a crise norte-americana afetou a economia em escala mundial.

Apesar de não existir uma explicação exata para a crise econômica, ela estaria nos objetivos do neoliberalismo, nos seus instrumentos utilizados para buscá-lo e nas suas próprias contradições. A hegemonia dos Estados Unidos da América, a busca por altas rendas, combinada com as realizações associadas à financeirização e à globalização são fatores identificáveis do fenômeno. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).

A financeirização significa o incremento de mecanismos financeiros que alcançaram níveis sem precedentes de sofisticação e expansão das instituições financeiras. Após o ano 2000, esses mecanismos de expansão tiveram crescimento ainda maior com a introdução de procedimentos inovadores que afetaram sobremaneira o livre comércio de capitais no mundo todo, que culminou em uma estrutura financeira frágil ante a dificuldade de controlar taxas de juros, de câmbio e empréstimos em um mundo de livre circulação de capital. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).

O que a princípio seria uma crise de liquidez com o declínio do mercado imobiliário, era apenas um dos problemas dentro de um conjunto muito mais amplo dos fatores determinantes que deflagaram a crise.

A identificação de uma estrutura financeira frágil, a partir de pressupostos desregularizadores que marcaram as décadas precedentes, associada à crise que desestruturou o sistema financeiro em geral, gerou, no campo que interessa ao tema da coluna, a necessidade de debate público acerca da necessidade de reforma dos sistemas de regulação e fiscalização dos mecanismos financeiros como forma de proteção e prevenção do sistema financeiro global, surgindo assim, a questão da autorregulação. (SANCHEZ; FERNANDES, 2013, p.78)

A referida crise financeira colocou em pauta novamente o tema sobre a regulação e a posição do modelo de intervenção do Estado. O paradigma ideológico que via como benéfica a desregulamentação para o exercício do livre mercado passa a ser questionado, tendo em vista a complexidade das relações econômicas no mercado financeiro e a dificuldade de fiscalização das instituições financeiras nas relações globais.

É certo que a visão convencional da atividade reguladora do Estado enfatiza dois pontos de vista, quais sejam: liberdade e controle ou, em uma abordagem de sistemas políticos contrapostos, liberalismo e estatismo. Ocorre que entre eles existe uma pluralidade de sistemas intermediários que podem se revelar melhores para conjugar os interesses privados e coletivos. (VILA, 2013, p. 44)

Assim, a autorregulação tem como objetivo buscar uma articulação que propõe uma nova forma de regular, que combine a presença normativa oriunda do próprio setor privado com um sistema de controle adequado na mão do Estado, “o que se produz a é uma nova correlação entre Estado e Sociedade em torno da técnica de controle dos riscos”. (PARDO, 2013, p.33)

Tudo isso denota uma recomposição das relações entre Estado e sociedade com um crescente protagonismo do sujeito privado, relegando à administração pública um caráter secundário cujas funções devem se adequar a esse novo cenário.

Importante destacar que o conceito de autorregulação aqui tratado não é o de um sistema unicamente privado de regulação da atividade econômica e, como conseqüência, da completa ausência de qualquer intervenção reguladora do governo, mas sim de buscar uma articulação que propõe uma nova forma de regular, que combine a presença normativa oriunda do próprio setor financeiro com um sistema de controle adequado na mão do Estado.

Este novo modelo de intervencionismo público é um intervencionismo à distância, baseado na cooperação entre os poderes públicos, sujeitos regulados e outros agentes sociais, com o fim de não só gerar normas de comportamento, mas também de encarregar-se de seu enforcement, ou seja, da aplicação da Lei. Não se trata de uma ausência estatal, mas sim de uma forma de garantir a sua presença eficaz mediante uma forma de controle mais sofisticada.(NIETO MARTIN, 2008, p.18)

A análise econômica a partir da crise de 2008 demonstra essa nova relação em torno das técnicas de prevenção do risco bem como indentifica, temporalmente, em que momento o Estado passa a impor ao agente privado o dever se autorregular. Neste sentido é que os programas de compliance tem se mostrado imprescindíveis na gestão do risco que advém da atividade econômica empresarial, principalmente em decorrência de uma tendência de atribuição legal de responsabilidade criminal, inclusive por omissão, ao particular jamais vista. Todos esses reflexos na legislação penal brasileira serão analisados nos próximos artigos.


REFERÊNCIAS

DUMÉNIL, Gérard, LÉVY, Dominique. A crise do neoliberalismo, trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014.

NIETO MARTIN, Adan. Responsabilidad social, gobierno corporatrivo y autorregulacion: sus influencias en el derecho penal de la empresa. In. Política Criminal., n. 5, 2008, p1/18.

PARDO, José Esteve. La nueva relación entre Estado y sociedad: Aproximación al trasfondo de la crisis. Madrid: Marcial Pons, 2013

SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria; Fernandez, Raquel Montaner. Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Ed. Atelier, 2013.

VILA, Ivó Coca. Programas de cumplimiento como forma de autorregulación regulada?, In: SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria; Fernandez, Raquel Montaner. Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Ed. Atelier, 2013.

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Rafael Guedes de Castro

Advogado (PR) e Professor

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