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Direito Penal e Nanotecnologias

Por Bernardo de Azevedo e Souza

Em meados do século XIX, Chicago era uma das mais importantes cidades dos Estados Unidos. Verdadeiro centro distribuidor, transportava trigo e carne de porco preservada das planícies para as cidades costeiras. De uma pequena aldeia transformou-se, em questão de décadas, numa grande metrópole, expandindo-se com uma velocidade extraordinária e triplicando de tamanho durante a década de 1850.

Apesar da importância e do crescimento exponencial, Chicago sofria de um legado incapacitante: o rastro deixado por geleiras milhares de anos antes que seres humanos ali se estabelecessem. Enquanto a maioria das cidades gozava de um desnível seguro entre os rios ao redor dos quais tinha se desenvolvido, Chicago possuía uma geografia imperdoavelmente plana, a exemplo de uma tábua de passar roupa (JOHNSON, 2015, p. 110).

No entanto, ao contrário do que se poderia pensar, construir uma cidade num terreno nestas condições apresentava desafios. As topografias planas, em verdade, não drenam. E, na metade do século XIX, a drenagem pela gravidade era fundamental para a construção dos sistemas de esgotos urbanos. Como a água não tinha para onde ir, as fortes tempestades de verão transformavam o solo, em questão de minutos, numa região pantanosa. Pessoas afundavam na lama até os joelhos. Nem mesmo as pranchas de madeira colocadas para facilitar a travessia eram suficientes: um lodo verde e preto com frequência jorrava entre as rachaduras. A sujeira nos bueiros da cidade era tanta que um editorial local chegou a dizer que até os porcos torciam o nariz de tanto desgosto (JOHNSON, 2015, p. 111).

As consequências da imundície de Chicago não eram ofensivas somente para os sentidos, mas causavam efeitos mortais. Epidemias de doenças culminaram na morte de milhares. No verão de 1854, morreram 60 pessoas por dia durante um surto de cólera. Tudo isso porque as autoridades não compreendiam, à época, a conexão existente entre os resíduos orgânicos e a doença. A bacteriologia ainda não estava bem desenvolvida. Somente uma década depois se descobriria que as invisíveis bactérias transportadas pela matéria fecal eram as responsáveis por poluir o suprimento de água. Chicago possuía sérios problemas de saneamento, que deveriam ser solucionados o quanto antes.

Foi necessária a intervenção do engenheiro Ellis S. Chesbrough para resolver a questão. Por meio da utilização de macacos de rosca, Chicago foi “levantada”. Edifício por edifício, foi suspendida com os dispositivos por um exército de homens, comandado pelo engenheiro, abrindo espaço para a construção das tubulações de esgoto. Era o início do primeiro sistema de esgotos aplicável a qualquer cidade americana, cujo exemplo mais tarde viria a ser seguido em outras localidades.

A história de Chicago aqui brevemente descrita possibilita a interessante reflexão de que, desde os primórdios dos assentamentos humanos, descobrir onde colocar o excremento tem sido tão importante quando aprender a construir abrigos, praças ou mercados. Embora não pensemos sobre isso diariamente, o crescimento e a vitalidade das cidades sempre dependeram de nossa capacidade de gerenciar o fluxo de resíduos humanos, sobretudo no momento em que se intensificam nas grandes metrópoles.

A experiência do sistema de esgotos de Chicago não somente permitiu eliminar o mau cheiro e reduzir o número de morte por doenças, como ajudou a tornar possível algo tão simples como desfrutar de um copo de água potável diretamente da torneira. Desde então, a técnicas de saneamento evoluíram paulatinamente, tendo a aplicação de cloro (hipoclorito de cálcio) para purificar a água sido um importante passo.

Atualmente, as novas tecnologias buscam inovar ainda mais. No ano de 2011, a Fundação Bill e Melinda Gates anunciou uma disputa intitulada “Desafio para reinventar a privada”, cujo vencedor foi um sistema de lavabo do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Inteiramente autossuficiente, sem depender de rede elétrica ou tubulação de esgoto, o equipamento utiliza células fotovoltaicas para alimentar um reator eletroquímico, que trata os resíduos humanos.

Esta é, portanto, a sociedade tecnocientífica em que vivemos, uma época em que as tecnologias a cada dia almejam resolver os problemas da humanidade. Trata-se de um momento em que a imunda Chicago de 1850 se contrasta com ambientes absurdamente limpos como o da Texas Instruments, a fábrica de nanochips situada em Austin, no Texas.

Para que se possa adentrar no imaculado recinto da empresa é necessário um traje especial, que cobre o corpo da cabeças aos pés com materiais estéreis. Isso porque a produção de nanochips requer grandes quantidades de uma água especial, que não pode entrar em contato com impurezas humanas. Esta água (H2O ultrapura) é livre não somente de qualquer contaminação bacteriana, como também de todos os minerais, sais e íons aleatórios que compõem a água filtrada normal. A ausência destes elementos torna a água ultrapura impotável para seres humanos (JOHNSON, 2015, p. 136).

Eis os curiosos saltos da evolução humana: no século XIX, algumas das ideias brilhantes das ciências e engenharia possibilitaram purificar uma água que era muito suja para beber. Hoje, 150 anos depois, os avanços tecnocientíficos e as pesquisas em nanotecnologias permitiram criar uma água limpa demais para ser degustada.

As nanotecnologias e a nanotecnociência estão trazendo consigo a possibilidade de uma verdadeira revolução em nossas vidas. Se há pouco tempo falava-se em descobertas microscópicas, hoje a discussão reside nas inovações geradas na escala nano. Com a finalidade de extrair a maior quantidade de benefícios, a ciência está ingressando em patamares cada vez menores nas estruturas naturais, fomentando, por via de consequência, curiosidades e desafios (WERMUTH; FORNASIER; 2014, p. 8).

Os compostos em escala nanométrica estão presentes em diversos produtos usados pelas pessoas no cotidiano: band-ais, cremes dentais, bolas de tênis, cosméticos com filtro solar, preservativos masculinos, bebedouros e secadores de cabelo (VON HOHENDORFF, 2015, p. 15-16). No que diz respeito aos potenciais benefícios das nanotecnologias, há relatos de possibilidades terapêuticas para o tratamento de células cancerosas por meio de nanopartículas magnéticas, bem como para substituição de genes em células-alvo, de modo a eliminar desordens genéticas ou produzir agentes capazes de estimular o sistema imunológico (WERMUTH; FORNASIER; 2014, p. 8).

Em que pese as inúmeras contribuições das nanotecnologias, compreendidas aqui como um conjunto de técnicas multidisciplinares que permitem o domínio de partículas com dimensões extremamente pequenas, que exigem propriedades mecânicas, óticas, magnéticas e químicas completamente novas (VON HOHENDORFF, 2015, p. 11-14), seu manuseio e aplicação traz consigo muitas incertezas, notadamente relacionadas aos riscos altamente nocivos à saúde e ao meio ambiente, sendo daí imprescindível o diálogo com o Direito.

A discussão revela-se de suma relevância também no âmbito do Direito Penal, pois, a partir de um exercício de futurologia, podemos vislumbrar as nanotecnologias como formas de potencializar ainda mais a internalização da vigilância e da pena. Como hipóteses de aplicação das nanotecnologias, imaginemos a colocação de implantes imperceptíveis em apenados; o monitoramento, rastreamento e controle a todo tempo por nanorrobôs; o disparo de calmantes na corrente sanguínea de indivíduos “considerados” perigosos; o emprego de nanoestruturas para tornar criminosos mais dóceis e assim por diante (WERMUTH; FORNASIER; 2014, p. 8).

Em suma, o emprego de tecnologias em escala nano no âmbito da investigação e persecução criminal poderá resultar em toda a espécie de intromissão na vida, privacidade e personalidades humanas. Suscita-se, assim, a possibilidade de graves violações a direitos fundamentais, conquistados a duras penas ao longo história da humanidade, em prol da tão almejada “segurança”, aqui residindo igualmente o debate sobre a chamada Criminologia Atuarial (ver aqui e aqui), cuja análise da criminalidade se efetiva por meio de uma lógica economicista, sem atentar para os aspectos antropológicos e sociológicos do fenômeno.

Estará o Direito Penal preparado para as nanotecnologias?


REFERÊNCIAS

JOHNSON, Steven. Como chegamos até aqui: a história das inovações que fizeram a vida moderna possível. Tradução de Claudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

VON HOHENDORFF, Raquel. Revolução nanotecnológica, riscos e reflexos no Direito: os aportes necessários da transdiciplinaridade. In: ENGELMANN, Wilson; WITTMANN, Cristian (orgs.). Direitos humanos e novas tecnologias. Jundiaí: Pacto Editorial, 2015.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; FORNASIER, Mateus de Oliveira. Direito Penal e novas tecnologias: um diálogo necessário. In: Anais do Salão do Conhecimento – UNIJUÍ – 2014. Ijuí: Unijuí, 2014. v. 1, pp. 1-11.

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