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Direito Penal, economia política e psicanálise: uma relação necessária


Por Fábio da Silva Bozza


O objetivo do presente escrito é o de demonstrar a impossibilidade de se utilizar o direito penal como instrumento de controle da criminalidade nas sociedades ocidentais contemporâneas.

Se é possível afirmar, com Freud, que a falta é constitutiva de todo ser humano, é de se refletir sobre como convivemos com essa falta. Na modernidade, quando o homem estava marcado pela existência de uma razão instrumental, que permitia que a razão ligasse seus desejos aos objetivos a serem alcançados para satisfazê-los, o mal-estar estava configurado pelo fato de que, ao alcançar seu desejo, verificava-se o deslocamento a outro desejo. Ou seja, o mal estar é perene, pois a falta nunca será preenchida.

Pois bem, na pós-modernidade (se é que é possível afirmar a superação da modernidade), a razão instrumental é colocada em xeque pelo homem. Talvez o fracasso na tentativa de planificar a economia foi um símbolo para afirmar essa tese (HAYEK, 1987). Ademais, quando o modelo econômico neoliberal passa a funcionar como um modelo epistemológico, novas subjetividades são forjadas. O homem nega qualquer forma de assujeitamento pela cultura, pelo outro. Na sociedade de mercado, sua condição de sujeito deixa de ser marcada pela condição de homem racional e passa a ser determinada pela condição de consumidor (BAUMAN, 1999).

Assim, o gozo é atingido em objetos, e não mais com a consecução de objetivos. Sensações intensas e passageiras substituem o caminho a ser percorrido para atingir os objetivos. Isso quer dizer que o homem passa a buscar o preenchimento da falta com coisas, objetos. Assim, o deslocamento se verifica de objeto para objeto. E essa forma de pensar o mundo atinge parte considerável das pessoas.

Daí concluirmos pela impossibilidade de o direito penal funcionar como sistema de controle social nas sociedades contemporâneas. Se o direito representa o mínimo ético de uma sociedade, numa sociedade em que não há espaço para a ética, diante do imperativo do sucesso entre os competidores em um mundo livre de regras, não há espaço para o direito penal cumprir qualquer função ética. Trata-se de um amontoado de normas sem qualquer sentido. Em vez de as normas jurídicas funcionarem como limite ao agir humano, passam a ser interpretadas como obstáculos a serem superados.

No mundo contemporâneo, considerável parte das pessoas nega qualquer possibilidade de assujeitamento (LEBRUN, 2008). Se a lei era o limite, deixou de o ser. Vive-se uma sociedade em que o que se quer é “viver sem limites”. Para a pobreza, a criminalidade deixa de ser simples meio de subsistência. É forma de evitar o assujeitamento, e criar sua subjetividade a partir da condição de consumidor. O neossujeito não pratica crimes apenas para colocar comida em casa. Isso não é mais suficiente. É preciso gozar, a qualquer preço. É preciso ter a roupa da moda, o carro do ano, etc.. E quando isso é conquistado, a falta continua lá, e sempre é necessário algo mais. Aquele que é detentor de bens de consumo segue a mesma lógica. São sujeitos que se situam nesse contexto. Pessoas que querem consumir mais e mais, sem qualquer limite.[1]

Como demonstra Lebrun, essa forma de pensar não representa uma patologia, mas sim a autoimagem do homem contemporâneo (LEBRUN, 2008). Mais uma vez: o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico, mas sim um modelo epistemológico; determina como o homem se vê em determinado momento histórico (MARQUES NETO, 2009). Se o elemento constitutivo do humano reside na condição de consumidor, e se a grande maioria das pessoas não possui recursos suficientes para poderem consumir, a necessidade não desaparece, e a demanda pela busca de se colocar na condição de consumidor continua existindo. Isso quer dizer que, se levarmos a sério a relação de determinação existente entre demanda e oferta, e considerarmos as ações criminosas (desde crimes patrimoniais de rua até crimes de colarinho branco) como meios de oferta para colocar pessoas na condição de consumidor, para preencher a falta que é constitutiva de todo ser humano, qualquer política criminal racional deve ter como objetivo controlar ou reduzir a demanda, e não eliminar a oferta. A oferta de algo que não possui demanda não possui qualquer sentido.

Do exposto extrai-se a conclusão de que se trata do desenvolvimento de uma teoria etiológica da criminalidade, o que, a princípio, produziria uma legitimidade do direito penal.

No entanto, para evitar referida conclusão, alguns esclarecimentos tornam-se necessários. Primeiro, a indicação da existência de possíveis causas para a criminalidade não tem pretensão de generalização. Segundo, uma análise etiológica não significa, necessariamente, que o fenômeno da criminalidade é um dado ontológico, independente das interações sociais que o definem, bem como da atividade seletiva das agências de controle penal. Referida análise permite o desenvolvimento de uma política criminal real, e não simplesmente política penal.

O desenvolvimento de uma sociedade que não esteja submetida ao modelo epistemológico neoliberal é um caminho para a superação do direito penal como instrumento de controle social. Terceiro, uma análise etiológica não afasta o reconhecimento de que o fenômeno do crime deva ser analisado, principalmente, a partir dos processos de criminalização, e não de suas causas. A criminologia crítica, como crítica da sociedade, não deve se furtar a indicar alguma relação entre estrutura social e criminalidade. Essa atividade apenas reforça a tese da seletividade estrutural do direito penal. Embora não haja estudos empíricos sobre os índices de criminalidade real, aquela que forma a chamada cifra oculta, apenas a análise da cifra registrada desvela um sistema penal orientado à seleção dos membros das classes subalternas.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

HAYEK, F.A. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura: Instituto Liberal, 1987.

LEBRUN, Jean-Pierre. A perversão comum: viver juntos sem o outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo e gozo. In Escola Lacaniana de Vitória. A lei em tempos sombrios. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009.


NOTAS

[1] Ainda que se não tenha espaço para isso nesse trabalho, verifica-se a importância de uma breve reflexão a respeito da política criminal sobre drogas. Primeiro, nunca, na história moderna, houve política criminal sobre coisas, mas sim sobre pessoas. Segundo, enquanto essa política criminal tiver como alvo a oferta de drogas será impossível o controle do fenômeno. A partir do quadro acima descrito, verifica-se a demanda pela droga como algo que é oriundo de todas as classes sociais. A tentativa de preencher o vazio existencial, ou fugir do mal-estar contemporâneo, passa pelo consumo de drogas, lícitas ou ilícitas. Controlar, com política de guerra, a circulação de substâncias entorpecentes atacando a oferta, como afirma Sebastian Scheerer, significa querer acabar com uma lei da economia a tiros. Certamente não se terá sucesso. Enquanto houver demanda haverá oferta.

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