Direito Penal em tempos de pandemia
Direito Penal em tempos de pandemia
Em razão a tudo o que vem acontecendo nos últimos meses, o Direito demonstra, de forma mais evidente, o seu papel importantíssimo na defesa dos interesses das pessoas e das instituições, e, é nesse cenário que representantes de Estados ganham protagonismos quando adotam medidas técnicas de prevenção e combate à propagação em relação ao coronavírus.
Assim, têm-se escutado que, a título de ampliação na aplicação dessas técnicas de prevenção e combate, medidas mais rígidas, como a prisão inclusive, seriam aplicadas àqueles que desrespeitarem as orientações de isolamento social, caso não fosse atingido o índice ideal.
Sem querer adentrar em discussões políticas, a presente análise é, na verdade, um convite para pensarmos sobre a aplicação do direito penal em tempos de pandemia já que diariamente se lê ou se escuta notícias sobre o assunto. O intuito não é encontrar uma resposta, mas saber ponderar acerca da viabilidade ou não da medida que prevê a prisão como forma de enfrentamento ao vírus.
Só após a Organização Mundial da Saúde classificar o coronavírus como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) foi que as autoridades brasileiras iniciaram, ainda que de maneira tímida, campanhas alertando sobre o assunto como técnica de prevenção ao contágio. Com a edição da portaria 188/2020 do Ministério da Saúde, se decretou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em razão da infecção humana pelo coronavírus, ou seja, houve um avanço significativo de risco de contágio já que agora a transmissão ocorreria de pessoa para pessoa.
Diante do avanço do cenário acima afirmado, que não estava acontecendo somente no Brasil, mas em quase todo o mundo, a OMS classificou o COVID-19 como pandemia. A partir de então, o governo Federal e o dos Estados começaram a ampliar as medidas de prevenção e combate ao contágio, estimando que o pico do contágio do coronavírus ocorreria entre os meses de abril e junho, e, dentre as medidas, o isolamento social para o bem da população, freando a subida da curva de contaminação e o colapso do sistema de saúde.
Leia mais textos sobre ciências criminais e COVID-19
Ao perceber que após o momento inicial positivo, a adesão às medidas de quarentena e isolamento, previstas na lei 13.979/2020, Artigo 3º, incisos I e II, não estavam sendo seguidas por boa parte da população, as autoridades passaram a considerar a adoção de medidas mais rígidas em resposta à desobediência da população, como por exemplo, o uso da força policial, podendo chegar à prisão.
Chegamos ao objeto principal deste texto que é pensar acerca da medida extrema anteriormente citada, ou seja, será então a prisão medida eficaz e necessária ao combate ao novo coronavírus, ou, estamos diante de uma banalização do direito penal, em outras palavras, é exagerado o uso do direito penal nessa circunstância.
Quando se estuda o direito penal, uma das bases principiológicas é a sua utilização em ultima ratio, ou seja, quando todos os outros campos do direito forem insuficiente daí sim, a utilização do direito penal poderá ser usado subsidiariamente.
Todavia, para tal utilização, é imprescindível a análise de outros dois subprincípios que irão orientar a aplicabilidade da lei penal através da intervenção mínima e da fragmentariedade. O primeiro, busca a máxima utilidade do direito penal com o mínimo sofrimento do indivíduo, quer dizer, quando o direito penal tiver que intervir na vida do indivíduo, que seja de forma mínima, haja vista a previsão Constitucional de que a pessoa humana também goza direitos e não só de deveres. O segundo, delimita a atuação do direito penal nas condutas que representem ameaça ou ofensa a bens jurídicos fundamentais.
Nesse sentido, quando ouvimos um representante de Estado dizendo que a pessoa que descumprir as medidas de prevenção ao combate ao coronavírus pode estar sujeita as penalidades da lei, concluísse que, a prisão, mesmo sendo medida extrema, em tempos de pandemia, parece ser a decisão correta, isso por que, outras formas de prevenção já foram utilizadas sem atingir os resultados pretendidos, não havendo outra opção a não ser a possibilidade de pena de prisão para o convencimento da população.
Por esse motivo é que no código penal, no capítulo dos Crimes Contra a Saúde Pública há a previsão, no Artigo 268, dirigida a pessoa que infringe determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, com pena de detenção de 1 (um) mês a 1 (um) ano e multa.
Mas a possibilidade da prisão certamente não é tão simples, como faz parecer o discurso de algumas autoridades. A pandemia não faz distinção entre as pessoas isoladas e não isoladas, livres ou encarceradas, a efetiva transmissão da doença parece não ser interrompida se não há qualidade sanitária no ambiente de isolamento, e, dentre aqueles que estão inseridos em ambientes de isolamento mais propícios ao contágio, estão os encarcerados no nosso sistema prisional, esses, estão vulneráveis considerando que a transmissão do vírus ocorre por meio de contato pessoal ou com superfícies contaminadas, a partir de gotículas respiratórias da saliva ou de secreções da tosse ou espirro, sendo que, as principais medidas de prevenção, é evitar aglomerações de pessoas e o contato físico, além de higienização constante das mãos. Posto isso, o sistema carcerário é uma triste realidade onde além da superlotação, não há infraestrutura condizente ao tratamento e a prevenção.
Logo, não parece ter muito sentido a prisão do indivíduo que não cumpre a quarentena ou o isolamento em razão do descumprimento de medida sanitária preventiva destinada a impedir a propagação ou a introdução de doença contagiosa, visto que o ambiente onde há o maior risco de contaminação é no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo. Portanto, há um contrassenso do poder público ao pedir que as pessoas respeitem todas as regras de combate à pandemia e penalizá-las, caso não sejam seguidas, com a sua prisão.
Sem aprofundar na hipótese de aplicação da Lei 9.099/95, o qual prevê situações menos rigorosas quando da aplicação de pena máxima de crimes de até 1 (um) ano, cabendo acordo com o Ministério Público em cada caso, bem como a desnecessidade do pagamento de fiança quando arbitrada pela autoridade competente, decidido recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça no HC nº 568.693, em razão do coronavírus, a possibilidade da prisão, para quem descumpre a ordens de quarentena e isolamento continua a existir.
Devemos encarar a prisão em todas as suas fases, não só quando o indivíduo está efetivamente sentenciado, isso em razão da prisão ser por natureza uma restrição de liberdade desde o flagrante até posteriormente a sentença. Não é somente no cárcere de grandes instituições prisionais que existe o perigo de contágio, mas também, aquele cárcere dos distritos policiais e dos fóruns criminais onde há detentos das mais variadas instituições aguardando suas respectivas audiências, como também, a circulação de outras pessoas como servidores, estagiários, advogados e agentes de segurança.
A bem da verdade, estamos em uma encruzilhada. O próprio poder público descumpre com a lei quando encaminha o indivíduo à prisão em tempos de pandemia, considerando que a determinação é o isolamento. Destarte, cabe a cada um de nós fazermos uma reflexão e valorar se esta ou aquela medida é a mais adequada.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?
Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.
Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.