O Direito Penal como garantidor da Constituição: inadequações

O Direito Penal como garantidor da Constituição: inadequações

A Constituição da República de 1988 é referenciada frequentemente como “constituição cidadã”. Seu texto segue o modelo de estruturação do Estado Social Democrático de Direito, o que significa dizer que ela traz, além de enunciados garantidores de liberdade, a imposição de deveres ao Estado, em especial no sentido de suprimir desigualdades e efetivar direitos sociais difusos.

Com isso, ela consolida uma decisão política voltada a limitação de abusos aos direitos e garantias individuais e construção de uma sociedade solidária, fundada na dignidade da pessoa humana.

Na lição de COSTA (2012), uma das principais características das democracias constitucionais formadas no pós-guerra, seguidoras do modelo de Welfare State, inspiradas na Constituição de Weimar de 1919 e na Constituição Mexicana de 1917 e incrementadas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é a centralidade do papel da pessoa.

Fundar a ordem política sobre o papel central da pessoa e sobre a atribuição a ela de todos os direitos necessários para o desenvolvimento de suas potencialidades: esta é a mensagem contida da Declaração de 1948, e este é o núcleo em torno do qual nascem na Europa as novas democracias, construídas (na Itália como na Alemanha e na França) sobre as cinzas dos totalitarismos derrotados. (COSTA, 2012: 281)    

Por um outro lado, se nos voltarmos para a história do direito penal no Brasil após a Constituição de 1988, veremos que o período entre 1990 e 2016 assiste à criação de um número de leis incriminadoras e/ou que asseveraram as sanções penais muito maior do que o período que vai desde a entrada em vigor do código penal (1942) até a promulgação da constituição.

Haveria aí um paradoxo?

Em uma primeira análise as coisas parecem incongruentes – um modelo de Estado estruturado para dirimir desigualdades, refrear o poder do Estado e torna-lo compromissado aos direitos sociais e ao papel da pessoa não parece compatível com o expansionismo penal, com o aumento da ingerência do Estado em sua forma mais violenta.

O paradoxo, porém, é aparente. A hipótese que aqui se defende, de modo breve, é de que a forma de estruturação do Estado Social Democrático de Direito, em especial quando desacompanhada de medidas de reforço à democracia participativa, dão origem obrigatória ao expansionismo penal. Senão vejamos.

Quando a Constituição estabelece um rol extenso de direitos sociais e garantias individuais, ela instrumentaliza uma poderosa ferramenta política na mão dos cidadãos. Isso porque o Estado se verá constrangido a moldar seu planejamento de políticas públicas voltado à efetivação daquele extenso rol de direitos.

Ocorre, porém, que as metas estabelecidas pela Constituição formam um patamar de vida digna que exige uma estrutural mudança na forma de governo.

Em geral, esta nova forma de gerir os assuntos vai de encontro aos interesses de segmentos importantes, quer seja em sentido econômico, quer no sentido das complexas relações de poder político – grandes empresas, indústrias, fomentadores internacionais (FMI, BACEN, etc), investidores privados e outros “grandes atores” do cenário político econômico mundial.

Além disso, as demandas sociais, pautadas pelo estabelecimento de direitos fundamentais no texto constitucional, nem sempre permitem uma conjugação pacífica e tranquila.

A efetivação dos direitos de determinadas minorias, privilegiadas no cuidado fornecido pelo modelo de democracia constitucional plural, por vezes se choca com interesses e direitos de outras minorias ou mesmo de grandes blocos de poder político.

Diante desse quadro, o Estado se vê pressionado a fornecer respostas para problemas de envergadura histórica, para os quais a estrutura socioeconômica nunca esteve preparada.

A mudança cultural que seria necessária para que se tornasse possível pautar as políticas públicas nos moldes de um Estado Social, solidário, não ocorrem pela promulgação de um texto constitucional, por melhor que este seja.

O efeito desta discrepância, ou seja, de termos de um lado um extenso rol de direitos e garantias, fruto de um desenvolvimento histórico interno e externo que leva ao modelo de Estado Social, e de outro uma cultura política fortemente influenciada pelo “coronelismo”, com sérios problemas estruturais de nepotismo e corrupção sistêmica, aliada à ausência de um programa de educação básica e a forte dependência econômica externa, cria um cenário de ampla demanda e escassa entrega de garantias.

A consequência derradeira é que o Estado lançará mão da medida mais “econômica” e acessível para, de modo totalmente simbólico, tentar fazer frente a demanda de proteção de minorias e garantia de direitos sociais. Utilizará, para tanto, o direito penal. Tentará fazer do direito penal o garantidor da Constituição.

Novas leis penais e o recrudescimento das penas reproduzirão, de forma populista, quase toda a política pública de proteção e concretização de demandas sociais.

Quando, por exemplo, o Congresso aprova uma lei que pune rigorosamente o racismo, dá a impressão de que se importa com a causa dos afrodescendentes.

Quando o chefe do executivo sanciona uma lei que garante a imprescritibilidade de um crime como o estupro, simbolicamente passa a mensagem de que se sensibiliza com a causa feminista.

Quando membros do Senado votam a favor de leis anticorrupção duras e vão à mídia apoiar medidas inquisitórias de persecução de determinados agentes, produzem a imagem de que estão em sintonia com o desgosto da população em relação ao asqueroso cenário de locupletamento destes agentes.

Assim, a legislação penal vai funcionar como “panos quentes” para a tensão operada entre os direitos elencados na Constituição e a falta de medidas idôneas de concretização destes.

Considerando que a maior preocupação aparente de muitos membros do legislativo é a perpetuação de sua posição e influência política, fica fácil perceber como as medidas punitivas encontrarão vozes cada vez mais enérgicas em prol de sua ampliação.

Loic Wacquant (2007) foi muito feliz no diagnóstico que fez ao descrever esse movimento como a redução do papel social do Estado à amplitude e extensão de sua intervenção penal. Quando ele intitula o capítulo I da obra Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos como “Do Estado Caritativo ao Estado Penal” é justamente pensando, ainda que com uma base de pesquisa diferente, neste cenário que estamos tentando descrever.

Valeria a pena tecer comentários sobre os mandados constitucionais de criminalização e verificar em que eles se enquadram no aqui se procurou afirmar.

Seria igualmente interessante conectar este diagnóstico com a teoria do bem jurídico, demonstrando em que ela contribui com a sensação simbólica e ilusória de que o direito penal é capaz de garantir ou proteger direitos sociais. Com o intuito de não delongar o texto, porém, são elencadas a seguir três conclusões provisórias:

I – o estabelecimento de direitos sociais e garantias fundamentais, elencados em nossa Constituição de 1988, não condiz com a estrutura socioeconômica em que país veio inserido no final do século XX e início do Séc. XXI;

II – pior do que isso, a cultura política funciona de forma refratária ao modelo de Estado Social Democrático de Direito;

III – neste cenário, o Estado tende a oferecer a pior das respostas, a mais inútil e ineficaz, de cunho meramente simbólico, às demandas sociais que enfrenta: a expansão da esfera de aplicação (e severidade) do direito penal. Essa resposta é manejada de modo populista, garantido a manutenção de poder político.

As conclusões apontadas prescindem de uma demonstração empírica mais demorada e podem ser melhor trabalhadas futuramente, de modo a fornecer um quadro mais claro no que diz respeito a relação entre a promulgação da constituição e a expansão penal em nosso país.

Não se questiona o fato de que a expansão penal das últimas décadas obedece a influxos supranacionais significativos. Não se questiona, também, o fato de que os direitos elencados na Constituição de 1988 resultam de uma vitória democrática histórica, que merece ser valorizada.

Ressalte-se ainda que estamos de acordo com os que chegam à conclusão de que o Brasil nunca viveu, na prática, um modelo de Estado Social.

O que se pretendeu colocar em evidência aqui foi o circulo vicioso e cruel que estabelece, entre a positivação de direitos sociais e a ilusória proteção penal destes direitos uma espiral de reforço do controle penal e aniquilamento de alguns dos direitos que se visava, em tese, garantir.


REFERÊNCIAS

COSTA, Pietro. Poucos, muitos, todos: Lições de história da democracia. Curitiba: UFPR, 2012.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007