Direito Penal Pré-Constitucional e Direito Penal Constitucional
Por Diógenes V. Hassan Ribeiro
Em importante artigo[1], Christoph Burchard, professor alemão na Universidade de Tübingen, distingue essas noções, mencionando que institutos/princípios como o “bem jurídico tutelado”, o “nullum crimen”, o da “ultima ratio” e o “in dubio pro libertate” são princípios/institutos pré-constitucionais, por isso, especialmente o do bem jurídico tutelado, teria sido substituído, conforme a jurisprudência do Tribunal Constitucional, pelo princípio da proporcionalidade. Cita esse autor que, em uma decisão de 2008, o Tribunal Constitucional Alemão afirmou que:
“Conforme a Constituição, as normas penais não estão sujeitas a nenhuma exigência que se possa derivar da teoria do bem jurídico em matéria penal.” As pretensões do Tribunal Constitucional seriam as “de controlar e limitar as leis penais, assim como qualquer outra norma legislativa.” Adotando a posição de Bernd Schünemann, que já teria rejeitado de há muito a figura/instituto do bem jurídico, diz que essa concepção clássica concretiza a seletividade penal, consubstanciada na “criminalidade aventureira e da miséria”. Este seria o direito penal das classes baixas, mas o direito penal contemporâneo, portanto constitucional, deveria dirigir-se também para as classes altas, contra, por exemplo o especulador da bolsa de valores, que não afeta diretamente a propriedade e os bens jurídicos de sujeitos determinados, mas ameaçaria a função relevante e indispensável do mercado de capitais.
O princípio da lesividade/ofensividade, portanto, situa-se na idade pré-constitucional e tem servido de peça argumentativa aos que são contrários aos crimes de perigo abstrato, pois esse princípio está totalmente ligado ao instituto do bem jurídico.
Em ambos os sentidos, é indiscutível que há uma ampla legitimidade e liberdade dos legisladores de editarem leis penais, consubstanciando o que se costumou designar de “expansão do direito penal”. Caracterizada a proteção a um determinado bem jurídico, seria possível legislar em matéria penal. Por outro lado, constatada a proporcionalidade da nova lei penal, por igual seria constitucional.
De qualquer modo, analisados individualmente os critérios da proporcionalidade, explica o citado autor, no que tange à “finalidade legítima”, esta tem funcionado tal como a categoria do “bem jurídico tutelado”, quando o Tribunal Constitucional Alemão outorga ao legislador essa ampla margem de “determinar o âmbito das condutas puníveis.” Em semelhantes termos, quanto ao exame da “conveniência e da necessidade”, que pode ser revelada no princípio da “ultima ratio”, o Tribunal Constitucional também concede ao legislador a “prerrogativa de diagnosticar a conveniência e a necessidade” e somente em situações excepcionais é que uma lei seria considerada desproporcional.
Por fim, quanto à “proporcionalidade em sentido estrito”, a falta de equidade no caso concreto não conduziria à inconstitucionalidade da lei, com o que, por igual, há uma margem ampla de legislação em matéria penal. Nesse caso, conviria que a legislação possibilitasse “uma abertura necessária para que a prática da administração da justiça penal permita, em algumas situações nas quais um castigo (severo) resulte desproporcional em relação à pena, minimizá-la, ou, inclusive, abster-se dela.”
Essa ampla liberdade e legitimidade do legislador em matéria penal é considerada, ainda, como uma ação paternalista do legislador, que age “de cima para baixo” e que pode “inventar” bens jurídicos, o que é contrário a teorias que dizem caber ao Estado “encontrar” bens jurídicos, agindo, então, de “baixo para cima”.
Nesse contexto, ingressam os designados crimes de perigo abstrato, em que precisamente não há ofensividade direta ou lesividade, mas há a proteção de um risco a um determinado bem, que pode ser, até auto-lesão ou “suicídio”. É o caso do crime de conduzir veículo automotor embriagado, que sofreu diversas alterações típicas nos últimos anos no Brasil, e que está no art. 306 do Código de Trânsito. A inconstitucionalidade da redação do art. 306 na redação da Lei nº 11.705/2008 estava na exigência de submeter o condutor a exame de etilômetro ou sanguíneo, por violação ao direito ao silêncio, não diretamente ao princípio da proporcionalidade. Atualmente a Lei nº 12.760/2012 corrigiu aquela inconstitucionalidade, antes mesmo de qualquer pronúncia do Supremo Tribunal Federal.
Mas há, também, o crime de perigo abstrato, entre diversos outros, de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido, ou de munição, sem o regular registro e autorização legal. No caso das armas de uso não permitido, compreensível que, para defesa pessoal, o legislador possa, efetivamente, estabelecer as características das armas possíveis de serem possuídas pelos cidadãos, não admitindo a posse de outras armas, mais potentes, com finalidades diversas da defesa, ou que o coloquem em uma superioridade absurda frente a um agressor.
Esses crimes são crimes de risco, próprios de uma sociedade de risco, que buscam a prevenção de fatos, vedando determinadas condutas.
A ênfase que se procura dar é a de que o princípio da proporcionalidade pode, em determinadas circunstâncias, promover uma atualização doutrinária e acadêmica dos institutos de direito penal. Por igual, pode, então, estabelecer um controle e uma limitação do direito penal. Contudo, é inegável que o legislador, por uma ótica ou por outra, tem legitimidade e ampla liberdade em matéria penal, seja à vista de institutos e princípios pré-constitucionais, seja à vista do direito penal constitucional. E isso é uma constatação da realidade, porque não é possível concordar com essa expansão do direito penal, nem com a sua polivalência, no sentido de que seria um remédio para todos os males.
Deveria, normativamente, idealmente, filosoficamente, haver sempre uma margem ampla de correção da aplicação da lei penal pelo aplicador, na sua concretização, atribuindo uma relação de equidade, que permitisse, nessa concretização, a redução da severidade, o que não se percebe, atualmente, nos limites mínimos da sanção penal em inúmeras situações.
[1] O princípio da proporcionalidade no “Direito Penal Constitucional” ou o fim da teoria do bem jurídico tutelado na Alemanha. AMBOS, Kai, BÖHM, Maria Laura. Desenvolvimentos atuais das ciências criminais na Alemanha. Brasília/DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 29-51.