Artigos

Direito processual penal do inimigo: se confessar, posso te aliviar…

Por Ruchester Marreiros Barbosa

Semana passada me deparei com um caso concreto interessante. Tratava-se de um inquérito iniciado em razão da condução coercitiva de uma pessoa suspeita de furtar cabos elétricos de uma determinada concessionária. Estava analisando os autos pela primeira vez em razão da nova lotação.

Os autos iniciam com a condução coercitiva de uma pessoa que estava com um uniforme de uma empresa na qual não trabalhava, em um veículo que também não era de sua propriedade, mas de seu cunhado. Os autos não revelavam como se chegou até esta pessoa, nem como ela teria sido considerada suspeita de furto de cabos elétricos.

Quando abordado, não havia cabos com ele. Dentre diversos objetos, ele tinha posse de 3 folhas de cheque em branco assinados pelo seu emitente, pertencente a um cartório de ofício de notas.

Chamado o proprietário do cartório, o Tabelião, também emitente dos cheques, narra em seu termo de depoimento que teria sido vítima de um roubo há 3 anos atrás e que dentre os bens subtraídos mediante ameaça de arma de fogo, teriam sido os cheques na posse o sujeito conduzido coercitivamente.

Havia um inquérito policial para apurar o crime de roubo em trâmite em outra na unidade de polícia judiciária próxima. O Tabelião, vítima do roubo não reconheceu o sujeito que estava com os cheques, donde se conclui que este sujeito, chamemos de Tício, não seria o autor do roubo.

Seria autor de uma receptação? Seria verossímil alguém ficar com um cheque em Branco por 3 anos? 2 anos? 1 ano? Favorecimento real? Alguém para proteger o objeto de um crime para o autor do roubo o faria portando o objeto do crime no seu bolso?

Em suma, mistério…

Nestes autos, Tício, em seu interrogatório, confessa dois fatos narrados como de subtração de cabos, mas não precisa horário nem dia, bem como confessa que o uniforme era para enganar as pessoas para que não percebesse que estaria furtando cabos.

Agora vou tocar o dedo na ferida. Na fratura do sistema. Aquela fratura que o próprio STF consagra em alguns de seus julgados, ou seja, de que no inquérito policial não há contraditório nem ampla defesa. Que não há direito ou garantia ao devido processo legal. Aquela do art. 5º, LV, de que “acusados em geral” se refere somente ao processo e não ao inquérito policial.

Seria isso mesmo? O inquérito policial é terra sem garantias fundamentais (Constituição)?

Mais uma vez, vemos a doutrina majoritária, por ignorância, sacramentar o vale tudo da investigação criminal. O processo penal aqui não é a uma ultima ratio, mas como diria um aluno meu, o “ultimate” ratio. Isso, um UFC entre Estado Vs Investigado, arbitrado pelo direito penal do inimigo. Advinha quem ganha?

Como nosso direito processual penal trata a questão da autoincriminação obtida por engano, ou seja, com o engodo ou estratagema para se obter a confissão da participação do investigado em um crime? Consequentemente, violando o princípio norteador da proibição de obrigar um investigado a produzir prova contra si mesmo, denominado de nemo tenetur ou nemo tenetur se detegere ou nemo tenetur se ipsum accusare.

Este princípio talvez seja o mais importante a se destacar dentro das provas proibidas, que em nosso ordenamento Constitucional se refeririam às ilícitas, denominada por Munõz Conde de “prohibiciones probatorias”[1], (CONDE, 2008, p. 33), traduzidas do alemão “Beweisverbote”, utilizado pelo jurista alemão Ernst Beling, citando com referência da amplitude do nemo tenetur o §136 a) do Strafprozessordnung/StPO (Código de Processo Penal Alemão).

Nesta obra Francisco Munõz Conde levanta as controvérsias sobre o tema, trazendo julgados emblemáticos ocorridos nos Tribunais Alemãs e norte-americanos, nas quais vem sendo debatidos há muito tempo, desde 1903, sobre a extensão deste princípio. Traz decisões nas quais em determinados casos os princípios são violados por teses que tentam diminuir a incidência do princípio à salvaguarda de emprego de técnicas policiais e judiciais que na verdade burlam de forma fraudulenta a proibição constitucional de proibição de produzir prova contra si mesmo.

Afirma, categoricamente, ainda que tais praxis apesar de não ser uma tortura física produzem os mesmos efeitos que esta, pois ao final, se consegue uma confissão que redunda numa condenação.

As teorias que questionam e debilitam a incidência do princípio do nemo tenetur se dá em geral nos casos de grande comoção social e principalmente no terrorismo e na criminalidade organizada, mas no Brasil, há um grupo de pessoas que não possuem direitos, os “vagabundos”, os “entiquetados” (BARATA, 2002, p. 86)[2], como integrantes de uma camada social de desprezíveis estigmatizados.

O autor então utiliza o paralelo da criação para esse fenômeno de mitigação desses direito fundamental, denominado pelo professor alemão Günther Jacobs de Direito Penal do inimigo, denominado de Direito Processual Penal do inimigo, diante de teorias que na verdade tentam excepcionar uma garantia no âmbito processual penal, qual seja um direito fundamental de proibição ou vedação de determinadas provas, obtidas de forma enganosa e fraudulenta, em situações de terrorismo e organizações criminosas, mas no Brasil utilizado de forma banalizada.

Neste sentido traz a colação os comentários e críticas realizadas pelo jurista alemão Claus Roxin, utilizando como paradigma um “leading case” da Suprema Corte Alemã, na qual em sede policial um investigado que já havia se manifestado no sentido de exercer seu direito de permanecer calado, a polícia faz com que seu amigo íntimo telefone para o investigado ainda na delegacia, e este amigo o faz falar sobre sua participação no crime que se investigava, enquanto agentes policiais escutavam a conversa em outro ponto.

A prova da confissão em casos como esses levou a Suprema Corte Alemã a posicionamentos controversos entre as suas Salas, como foi o caso da Sala 2ª e a Sala 5ª. A segunda não aceitou a prova por violar o princípio do nemo tenetur nos moldes do §136 a) 1, 2 e 3 do StPO e a quinta aceitou a prova, pois entendeu que a voluntariedade do acusado não teria sido viciada posto que não foi provocada diretamente pelos policiais, mas sim por um amigo.

A questão foi parar no Pleno da Suprema corte e restou vencedora a tese da Sala 5ª.

O Pleno fez distinção entre busca direta da confissão, realizada pelos próprios agentes da investigação e provocação indireta da confissão que é aquela realizada perante terceiro alheio aos quadros policiais.

Na provocação indireta não haveria violação do princípio pois este deveria ceder diante o princípio da proporcionalidade toda vez que a investigação ou processo se referir a fato de “importante significado” e se outros métodos forem mais complexos, mas com resultados menos eficientes.

Assim, segundo a Bundesgerichtshof: BGH (STF Alemão) fora destas hipóteses, qualquer outra forma de estratagema em enganar ou fraudar o direito do acusado de dizer expressamente se renuncia ou não seu direito de permanecer calado será uma prova inadmissível e sem valor.

Diante destes casos, (ROXIN, 1995, p. 426)[3] alerta que apesar da admissibilidade do interrogatório por meio de ardil ter sido muito limitado pelos Tribunais, até mesmo no caso em que lhes foi negado um direito a lesão ao princípio e ter afirmado a possibilidade de avaliar as provas adquiridas desta forma, insiste em dizer que se os Tribunais entendem que há violação ao nemo tenetur quando o funcionário público não adverte o acusado do seu direito de permanecer calado.

A tese de Roxin é bastante categórica em rechaçar qualquer tentativa de violar o princípio do nemo tenetur, invocando inclusive o projeto alternativo de reforma do Código de Processo penal Alemão na qual é coautor, no seu §150 b: “Nadie puede ser inducido a incriminarse a sí mismo por coacción, engaño o ardid.”

Neste sentido é vedado qualquer meio de obtenção de prova obtida por meio de ardil ou estratagema seja a fraude realizada diretamente por policiais, seja por interposta pessoa, como foi o caso do exemplo da confissão obtida por conversa do investigado e um amigo íntimo, sendo este orientado pela própria polícia a provocar a confissão daquele.

No Brasil ocorreu caso semelhante. Um policial, que não era lotado na delegacia conversou informalmente com o suspeito de um crime de homicídio, retirando dele detalhes do crime. Em seu interrogatório formal, perante os policiais lotados formalmente na delegacia o mesmo por orientação de seu advogado exerceu seu direito de permanecer calado.

Posteriormente, o policial que conversou informalmente foi ouvido como testemunha e seu depoimento utilizado como elemento informativo para oferecimento da denúncia, cujo teor foi repetido sob o contraditório judicial.

A questão foi levada até o Supremo Tribunal Federal[4] e a prova foi considerada ilícita.

O postulado das vedações da atividade probatória é calcado em limites éticos do Estado na apuração da verdade. É nosso jogo democrático. Negá-lo ou burlá-lo é instituir um Estado de exceção.

Neste caso concreto da confissão do furto, confessado em maio 2005 até outubro de 2015, mais de 10 anos depois não havia absolutamente mais nenhum outro elemento informativo sobre o furto, nenhuma testemunha, nenhum documento, nenhuma apreensão ou outro registro de ocorrência que ligasse investigado confesso à cena do crime por ele narrada.

Em suma, no inquérito policial somente havia uma confissão e diversas diligências perpetradas, sem sucesso, decorrentes desta, que fora obtida por meio ilícito.

Pergunto: qual a consequência da ilicitude de obtenção de informação através da “mera peça de informação” do inquérito policial? Nulidade! Consequentemente, seu desentranhamento dos autos e sua total impossibilidade de utilização como justa causa para a ação penal, bem como das diligências dela decorrentes.

Por fim, relatei o inquérito policial pela total impossibilidade de prosseguimento das diligências decorrentes de uma prova ilícita, por ausência de elementos de garantias, bem como o óbice intransponível da prescrição da pretensão punitiva pela pena em abstrato, que no furto simples, ocorrem após 8 anos.

O inquérito policial pode ser um instrumento de criminalização! Ou de garantias! Irá depender se o árbitro desse UFC seja o direito processual penal máximo ou mínimo.

Já passou da hora de ocorrer a verdadeira emancipação da investigação criminal como verdadeiro ambiente de garantias fundamentais do investigado ou imputado. A partir do momento que alguém é suspeito de um crime ele já é considerado, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos de “acusado”. Adota-se um conceito extensivo de acusado, como ficou claro no caso Caso Vélez Loor Vs. Panamá[5].

No mesmo sentido, (COSTA, 2011)[6] o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, nas decisões Serves v. França e Heaney and Macguinnes v. Irlanda, amplia o conceito de ‘acusado’ contido no art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos para lhe dar um sentido material, ou seja, toda aquela pessoa suspeita da prática de um crime, de modo que seja devidamente instruída de seu direito a permanecer em silêncio.

Ou seja, o art. 5º, LV da CR/88, ao tratar os “acusados em geral” está categoricamente se referindo também ao investigado numa interpretação da Constituição conforme os precedentes das Cortes Interamericanas de Direitos Humanos e da Corte Européia de Direitos Humanos. È inadmissível pensar de outra forma, sob pena de transformarmos a investigação criminal em um campo de concentração jurídica, um verdadeiro microcosmo do Estado de exceção.


[1] CONDE, Francisco Muñoz – Prohibiciones probatorias – De las prohibiciones probatorias al Derecho procesal penal del enemigo. §2: La autoinculpación conseguida mediante engaño. La tesis de Roxin, Buenos Aires, Hammurabi, 2008, p. 33 a 38.

[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed.  Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

[3] ROXIN, Claus, Nemo tenetur: Die Rechtsprechung am Scheideweg, en “Neue Zeitschrift für Strafrecht”, 1995, apud Conde. Ob. Cit., p. 35,

[4] HC 22371/RJ 2002/0057854-0 – STJ 6ª Turma j. 22/10/2002 DJ 31/03/2003

[5] Corte IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de noviembre de 2010 Serie C No. 218, párr. 108. Disponível aqui.

[6] COSTA, Joana. O princípio nemo tenetur na jurisprudencia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. In: Revista do Ministério Público. Ano 32, número 128: 2011, apud MACHADO, Iuri Victor Romero e JORGE, Murilo Henrique Pereira, disponível aqui.

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo