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A disparidade de armas e o mito da ampla defesa

A disparidade de armas e o mito da ampla defesa

Na coluna anterior (veja aqui) escrevi sobre o desequilíbrio da balança do direito no processo penal, compreendendo o processo como um jogo de guerra e de difícil jogabilidade: de todos contra um.

Outrossim, apontei, de forma singela, a disparidade de armas entre a acusação e a defesa, bem como a ausência de fair play dos Julgadores com a defesa.

Em suma, pode-se dizer que tudo que é contra o réu, mesmo que seja contra legem, vale (a violação do art. 212 do CPP é um exemplo irrefutável disso); e que tudo que é favorável ao acusado, mesmo com amparo constitucional, não vale.

Quero, aqui, retomar os exemplos anteriores: o de que o Ministério Público pode extrapolar o prazo previsto em lei para denunciar réu preso, sem que isto caracterize constrangimento ilegal, senão “mera irregularidade”, desprovida de maiores consequências; e o de que a defesa não pode extrapolar o miserável prazo de 10 dias para arrolar testemunhas, p. ex., porquanto, para a defesa – e somente para ela! – se opera o efeito da “preclusão consumativa” e “não se está diante de mera irregularidade”.

A desigualdade, no trato, é incontestável, assim como o prejuízo ao réu. Inobstante, cabe fazer uma análise da matéria sob outra perspectiva: a da ampla defesa.

Nucci (2012, p. 290) leciona que a ampla defesa representa “a mais copiosa, extensa e rica chance de se preservar o estado de inocência, outro atributo natural do ser humano.

Não se deve cercear a autoproteção, a oposição ou a justificação apresentada; ao contrário, exige-se a soltura das amarras formais, porventura existentes no processo, para que se cumpra, fielmente, a Constituição Federal”.

Esta amplitude da possibilidade de defesa, no processo penal, lamentavelmente, transformou-se – assim como o princípio da paridade de armas – num mito: na teoria, assegura-se a ampla defesa; na prática, evidencia-se uma defesa restrita, limitada, debilitada, enfim, precária e cerceada.

É preciso dizer: as amarras formais só valem para a defesa! Que não pode maculá-las: se o prazo de 10 dias, p. ex, para resposta à acusação for extrapolado, o acusado não mais pode arrolar testemunhas ou requerer novas provas.

Para além da ofensa à paridade de armas, denota-se que a amplitude de defesa, consagrada na Constituição da República de 1988,  deixou de contar com um significado material: passou a ser algo vazio, desprovido de conteúdo ou de sentido.

Aqui é preciso perquirir: o que seria uma defesa ampla, senão a possibilidade, observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de mitigação de eventuais formalidades, a fim de que o réu possa se defender da melhor maneira possível?

Dito de outro modo, não se estaria diante de um excesso de formalismo contra o acusado, que, em dez dias, contados da citação, tem de pensar sobre tudo e todos, não podendo esquecer de nada, a fim de responder a uma acusação cujo processamento perdurará anos?

A inobservância deste prazo fatal – apenas para a defesa! – de dez dias não deveria ser reputada mera irregularidade, prevalecendo o direito fundamental à ampla defesa?

Ora, Senhoras e Senhores: quando o artigo 212 do Código de Processo Penal é desrespeitado, normalmente a nulidade não é reconhecida sob o (absurdo) argumento de que a defesa não comprovou sofrer prejuízo.

Nessa linha, por uma questão de coerência, não se deveria aplicar o mesmo raciocínio quando a defesa postula a produção de uma prova fora do prazo legal e a acusação não comprova a ocorrência de prejuízo!?

Na verdade, a diferença é que eventual pleito defensivo nesta senda, ao contrário da inadmissível violação do art. 212 do CPP, encontraria respaldo na Constituição Federal, vale dizer, no direito fundamental à ampla defesa, já que a amplitude defensiva significa exatamente isto: o desapego das amarras formais para que o acusado tenha a chance de se defender da melhor maneira possível.

A incoerência que registra a jurisprudência, quando o assunto é a ampla defesa, é algo imperdoável. O STF, por sinal, oscila muito sobre a matéria.

A Lei de Drogas é um bom exemplo. Como se sabe, a Lei n.º 11.343/2006 trouxe à tona um rito próprio a ser respeitado, através do qual o interrogatório do réu não é o último ato a ser realizado na audiência de instrução e julgamento: ao contrário, ele é ato inaugural da audiência!

Como não poderia ser diferente, houve muita reprovação da doutrina acerca do rito adotado pela Lei de Drogas. A propósito, transcreve-se a pontual crítica de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa (2015):

[...] manter o interrogatório como primeiro ato da instrução na Lei de Drogas é uma manipulação da ampla defesa, própria da mentalidade inquisitória, cuja tática defensiva poderá contornar utilizando-se das regras do jogo processual. Por que, salvo se possível a viagem no tempo, não podemos nos defender do que não foi produzido.

O Supremo Tribunal Federal, apesar disso, em alguns julgados (v.g HC 113.625/RJ., rel. min. RICARDO LEWANDOSKI, DJe 1.2.2013), sedimentou o entendimento de que, se o réu foi processado sob a égide da Lei n.º 11.343/2006, o rito a ser seguido é o especial, estabelecido nos arts. 54 a 59 da Lei de Drogas, não havendo que se falar em inconstitucionalidade.

Entretanto, paradoxalmente, em julgado mais recente, envolvendo a incidência da Lei n.º 8.038/90 – que institui regras sobre os processos de competência originária das Cortes Superiores -, o STF decidiu no sentido de que, apesar do art. 7.º da Lei n.º 8.038/90 estabelecer o interrogatório do réu como ato inaugural da audiência de instrução e julgamento, deve-se deslocá-lo para o final da instrução, sob pena de se impossibilitar o exercício dos direitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa (AP 994 AgR, Rel.  Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 14/03/2017)!

Ou seja: para situações idênticas, decisões contraditórias. Num caso, há ofensa aos direitos de defesa; noutro não!

Não obstante, os disparates que se verificam no dia a dia dos egrégios fóruns e tribunais não cessam por aí. O Tribunal do Júri é um prato cheio quando o assunto é a mitigação dos direitos de defesa e a inexistência de paridade de armas.

Ah, o Júri… Aqui a situação se agrava, uma vez que deveria se assegurar a plenitude de defesa  (art. 5.º,XXXVIII, “a”, da CF), que é muito mais do que a ampla defesa.

A ABRACRIM/RS, neste sentido, emitiu nota pública, lavrada por seu presidente, Jader Marques, denunciando a disparidade de armas no processo penal, haja vista que os Promotores da Vara do Júri têm o mais amplo e irrestrito acesso ao famigerado sistema Consultas Integradas, programa utilizado para bisbilhotar a vida privada e a intimidade dos jurados que podem vir a compor o Conselho de Sentença.

O disparate é que os Advogados de defesa e Defensores Públicos não possuem acesso a este sistema e a tais informações, ficando comprometida, consoante a ABRACRIM/RS,

a necessária paridade de armas com a defesa para que os princípios constitucionais da ampla defesa e da igualdade de direitos sejam efetivamente respeitados. A paridade de armas é princípio do direito processual em geral, e do processo penal de forma ainda mais radical, pois se está a lidar com o bem jurídico mais precioso: a liberdade do indivíduo. Portanto, este tipo de privilégio à acusação é inconstitucional.

Mas não é apenas este privilégio à acusação que, no Júri, afronta à Carta Maior. A faculdade que tem o Ministério Público de ir à réplica é outra disparidade de armas: a Defesa fica a mercê da acusação, porquanto somente exercerá a tréplica se o acusador desejar, discricionariamente, ir para a réplica! Não bastasse isso, consolidou-se o absurdo entendimento de que a Defesa deve ser enfadonha na tréplica, já que “não pode” inovar na argumentação defensiva,

O que é isso! Sejamos razoáveis! Se no procedimento comum, onde vige a ampla defesa, a defesa é quem sempre tem a última palavra, manifestando-se por derradeiro nos memoriais, sem necessidade de se abrir um contraditório posterior à acusação e sem haver “impedimento de inovação”, porque é que no rito do Tribunal do Júri, onde vigora a plenitude de defesa (que é muito mais do que a ampla defesa), não pode a defesa, como sendo a última a se manifestar, inovar e exercer o direito defensivo em toda a sua plenitude, consoante bem entender?

Por que a defesa deve ser repetitiva e restrita, ao invés de plena?

Enfim, como o espaço aqui é delimitado, o escopo deste singelo texto foi o de trazer à tona algumas disparidades que se percebem no processo penal. É tarefa da Defesa, sempre e incansavelmente, não quedar-se silente perante tais situações, guerreando pelo devido – e equilibrado – processo penal.


REFERÊNCIAS

NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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