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A falaciosa ideia de distribuição da carga probatória no processo penal

A falaciosa ideia de distribuição da carga probatória no processo penal

A presunção de inocência, princípio constitucional com previsão expressa na carta magna de 1988, em seu artigo 5°, inciso LVII, como também na convenção americana de direitos humanos, constitui direito e garantia fundamental de todo o indivíduo, contra ingerências e abusos estatais.

Todo cidadão é, portanto,  presumidamente inocente, até que transite sentença penal condenatória em seu desfavor.

O estado de inocência é o que prevalece. E sendo assim, para que o indivíduo seja considerado culpado, o estado de inocência deve ser descaracterizado por completo, e essa descaracterização integral do estado de inocência, só se dará após o escoamento de todo o processo penal, com o advento de uma sentença condenatória irrecorrível.

Nesse diapasão, é correto afirmar que, mesmo em casos de prisão em flagrante, evidências incontestáveis, provas cabais, ou sentenças de segunda instância, o estado de inocência, ainda assim restará caracterizado.

Nas palavras do mestre Oliveira (2015), a presunção de inocência ou não culpabilidade deve ser encarada como um valor normativo a ser considerado em todas as fases, não só do processo, mas de toda persecução penal.

Por sua vez, Lopes Jr (2016) entende que a presunção de inocência deve ser encarada como um dever de tratamento, tanto dentro do processo como fora dele. Argumenta, dentre outras coisas, que a carga probatória deve ficar nas mãos da acusação, como também que a imagem e a dignidade do acusado deve ser preservada, devendo-se evitar, portanto, a espetacularização do processo.

Nota-se que, o estado natural é o estado de inocência ou não culpabilidade, portanto, só ha que se falar em responsabilidade penal, após a condenação em última instância, devendo o acusado ser tratado como inocente do início ao fim da persecução penal.

Partindo-se dessa premissa, analisaremos o artigo 156, do código de processo penal à luz do presunção de inocência e do direito à não auto incriminação, levando-se em conta a falaciosa ideia de distribuição da carga probatória no processo penal.

Conforme exposto, o réu, durante o curso do processo penal, é presumidamente inocente, tendo, inclusive, o direito de permanecer em silêncio; ele tem o direito de não produzir provas contra si mesmo, em virtude da não auto incriminação.

Ademais, o réu só pode ser considerado culpado caso estejam presentes, e não restem dúvidas acerca da materialidade e da autoria do fato criminoso, pois havendo qualquer dúvida que seja, o réu deverá ser absolvido, nos termos do artigo 386, incisos II, V e VII, do código de processo penal.

Em outras palavras, para que o réu possa ser considerado culpado, a sentença deve ser definitiva (irrecorrível), bem como não devem haver dúvidas acerca da materialidade e autoria do fato delituoso, devendo haver, portanto, provas suficientes para embasar a condenação do réu, pois só assim, a presunção de inocência poderá ser afastada integralmente.

Sabe-se que o processo penal é instaurado na tentativa de se esclarecer um suposto fato criminoso. Sendo assim, e para que isso ocorra, buscam-se elementos mínimos para que se possa legitimar e substanciar uma futura denúncia contra o suposto autor do fato.

Nesse diapasão, os órgãos acusatórios (MP e polícia), que fazem parte da estrutura estatal, detém uma aparelhagem específica, voltada à busca pela prova, o que facilita a propositura da ação penal.

Sendo inegável, portanto, a disparidade de forças entre a acusação e defesa, uma vez que aquela detém toda a aparelhagem estatal a seu favor, o que nos mostra um desequilíbrio.

É notória, portanto, a disparidade entre acusação e defesa. A defesa é a parte hipossuficiente nesta relação, e por este motivo, exige-se que a presunção de inocência seja descaracterizada, ao longo do processo, para que ao final, o réu possa ser considerado culpado, desde que não restem dúvidas; devendo haver, portanto, certeza para que possa ser proferida a condenação.

Nessa esteira, o caput do artigo 156, do código de processo penal, quando diz que “a prova da alegação incumbirá a quem fizer”, devemos interpretá-lo à luz da carta magna de 1988, aplicando esse ônus tão somente para a acusação, que deverá provar o que está alegando na sua exordial acusatória.

Sendo assim, devemos interpretar o referido dispositivo à luz da constituição, aplicando-o tão somente em relação à acusação, pois, conforme já explicado, o réu é presumidamente inocente, sendo ônus da acusação provar o contrário.

Desse modo não há que se falar em distribuição da carga probatória, e nem em inversão do ônus da prova, pois a acusação é quem  deve provar, de forma inequívoca, a autoria e a materialidade descrita na denúncia.

A defesa, por sua vez, fica desincumbida de tal mister, podendo provar o que por ventura alegar, mas não tem esse ônus, pois havendo ausência de provas para condenação, o réu será absolvido, independentemente de qualquer coisa.

Não há uma carga para a defesa exatamente porque não se lhe atribui um prejuízo imediato e tampouco possui ela um dever de liberação. A questão desloca-se para a dimensão da distribuição do risco pela perda de uma chance de obter a captura psíquica do juiz. O réu que cala assume o risco decorrente da perda da chance de obter o convencimento do juiz da veracidade de sua tese (LOPES JR, 2016, p. 200)

Nota-se que a carga probatória se encontra, única e exclusivamente, nas mãos da acusação, pois é tarefa do órgão ministerial promover a ação penal contra o suposto autor do fato.

E, em razão da prevalência do estado de inocência, o acusado não tem a obrigação de apresentar provas para mostrar que é inocente, pois a inocência já se encontra caracterizada desde o início, sendo, portanto, dever da acusação desconstruir a presunção de inocência e demostrar a culpa do acusado.

Dessa forma, apenas a título exemplificativo, se a defesa apresentar uma excludente de ilicitude (como, por exemplo, a legítima defesa), caberá à acusação provar que o acusado não agiu sob o manto da legítima defesa. Ou seja, o Ministério Público deverá provar que o acusado agiu imoderadamente, repelindo agressão que não era injusta, nem atual ou iminente.

Entendemos, portanto, que é ônus da acusação provar que o suposto agente delituoso cometeu um fato típico, antijurídico e culpável, pois a defesa possui o escudo da presunção de inocência e do direito ao silêncio, não sendo lícito atribuir esse ônus à defesa, que, conforme já exposto, é parte hipossuficiente na relação processual.

Vale ressaltar que o entendimento que prevalece tanto na doutrina quanto na jurisprudência é justamente o oposto. Entende-se que deve haver uma distribuição da carga probatória, devendo a defesa provar tudo aquilo que se alega.

Todavia, conforme já exposto, discordamos da referida posição majoritária, pois não há que se falar em distribuição de carga probatória no processo penal, e nem em que cabe a defesa provar todos os fatos que alega.

Gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência) ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui.

A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação (LOPES JR, 2016, p. 200)

Comungamos do pensamento de que, se a defesa não prova o que porventura alega, ela está perdendo a chance de convencer o juiz; ela está perdendo a chance de capturar psicologicamente o juiz para que o mesmo se incline para a tese defensiva por ela apresentada.

É inegável que quando a defesa não prova o que alega, ela perde a chance de ser absolvida de forma sumária, mas isso não implica em dizer que ela está obrigada a comprovar o alegado sob pena de ser prejudicada.

Sendo assim, mesmo quando a defesa não prova os fatos alegados ou a tese defensiva levantada, ela não pode ser prejudicada, pois o seu silêncio não pode ser interpretado em seu desfavor, em virtude da presunção de inocência e da não autoincriminação, sem falar que, no final, ela poderá ser absolvida em razão da insuficiência de provas.

Conclui-se, assim, que o caput do art. 156 do CPP deve ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, devendo-se atribuir apenas à acusação o ônus de provar o que alega, pois a defesa não tem essa obrigação, sendo apenas uma faculdade que lhe é oferecida para que possa confirmar seu estado de inocência.

Por fim, se faz necessário abandonarmos o ranço inquisitório que ainda existe no pensamento da numerosa doutrina e jurisprudência, que ignora por completo o estado de inocência, interpretando de forma contrária à constituição o silêncio do acusado e a ausência de provas para provar o que está alegando.


REFERÊNCIAS

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo. Saraiva. 2016.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal 19 ed. São Paulo. Atlas. 2015.

Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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