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Dizem que sou louco!?

Dizem que sou louco!?

A loucura sempre foi, em todas as sociedades, uma questão de como ela se relaciona consigo mesma, de como se relaciona com o próximo, de como vê e é vista pelo mundo. Não podemos, mesmo com tanta tinta gasta, admitir que temos um conceito unívoco da loucura vagando pelo mundo das ideias (JACOBINA, 2008, p. 29).

Por isso, ninguém – juristas, filósofos e os profissionais das áreas “psi” – consegue definir o que é loucura. Em suma, o conceito de doença mental, por si só envolve controvérsias que de um modo geral repercutem e envolvem o direito, seja na punibilidade ou no tratamento daquele rotulado como louco (SOARES, 1994, p. 78).

FUNK, DREW & SARACENO, afirmam de maneira segura,

Definir transtorno mental é difícil porque não se trata de uma condição unitária, mas de um grupo de transtornos com alguns pontos em comum. Há um intenso debate acerca de quais condições são ou devem ser incluídas na definição de transtornos mentais. Isso pode trazer implicações importantes quando, por exemplo, uma sociedade está decidindo sobre os tipos e a gravidade de transtornos mentais potencialmente qualificados para tratamento e serviços involuntários. (FUNK; DREW; SARACENO; 2005, p. 27).

Não se pode esquecer que a definição exata de doença mental perpassa por diversos fatores, antes de tudo isso, cabe ressaltar que é o propósito da legislação que definirá os limites dessa categoria. Ou seja, se a legislação estiver preocupada apenas com a internação involuntária, restringirá a categoria a doenças mentais graves.

Mas, se a legislação se voltar para a ampliação dos direitos positivos, pode estender seus benefícios a todas as pessoas portadores de transtornos mentais. Dessa maneira, podemos dizer que a definição de transtorno mental depende também do contexto social, cultural, econômico e legal de diferentes sociedades (FUNK; DREW; SARACENO; 2005, p. 27).

Assim, fundado nas orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), são considerados transtornos mentais e comportamentais as alterações mórbidas do modo de pensar, do humor e as alterações de comportamento associadas à angústia expressiva ou a deterioração do funcionamento psíquico global, de modo a não poder desempenhar normalmente, em razão de sua idade, sexo, fatores sociais e culturais, o papel que lhe caberia para sua realização pessoal (OMS, 1993).

Como nos ensina FOUCAULT (2001, p. 404), a psiquiatria, no século XIX, começou a funcionar como meio de defesa social. As indagações feitas pelo judiciário, dirigidos a ela, só se preocupavam em saber se o indivíduo era perigoso e se poderia ser curado.

Segundo o autor (FOUCAULT, 2001, p. 148), esses são questionamentos sem sentido, mas que realizado a uma psiquiatria voltada exclusivamente para a defesa social, ganham forma de “caça aos degenerados”, àqueles portadores de perigo. Ou seja, a psiquiatria passa a funcionar como ferramenta de caça ao perigoso. Foi como precaução social, como higiene do corpo social inteiro que a psiquiatria se institucionalizou (FOUCAULT, 2008, p. 12).

Assim, definir a doença mental com métodos empregados para a definição das patologias orgânicas, é considerá-la como uma essência natural manifestada por sintomas específicos. Não há, e não existirá entre essas duas formas de patologia, unidade real, existe somente um paralelismo abstrato. No fim, o conceito de doença mental continua em aberto (FOUCAULT, 2008, p. 12).

Cabe ainda falarmos do conceito de loucura no âmbito de outras ciências. De acordo com a língua portuguesa, podemos encontrar a definição de loucura como distúrbio, alteração mental caracterizada pelo afastamento mais ou menos prolongado do indivíduo e seus métodos habituais de pensar, agir e sentir.

Para a ciência da filosofia, o ser louco está diretamente ligado ao meio social em que vive, ao momento histórico em que essa sociedade passa e o contexto cultural da mesma, o que se quer dizer é que ser louco no Brasil, por exemplo, pode não ter a mesma conotação para determinada tribo africana.

Já na ciência jurídica, a loucura pode ser entendida como a condição de entender ou não um ato praticado tido na norma jurídica como lícito ou ilícito. Na prática de atos ilícitos o indivíduo estará sujeito à aplicação da norma penal diferenciada visto a sua condição de inimputável.

Há tempo e oportunamente é importante enfatizar que foi no século VIII que a loucura ficou mais bem delineada como uma manifestação do não ser. Dessa maneira a sociedade com medo que os loucos os contaminassem com essa desrazão, continuam a enviá-los para os hospitais gerais com o único fim de proteção da sociedade contra a propagação da loucura. Foi nesse período que a loucura foi tratada da maneira mais tosca: a ideia era mostrar a anormalidade que existia na loucura, com o fim de atender a uma necessidade da burguesia da época em exaltar a moral e a razão.

No fim, conceitua-se o louco sempre com termos relacionais, de forma explícita ou implícita. Quer dizer, o louco é o indivíduo cuja maneira de ser é relativa, diferente de outra determinada maneira de ser. Aliás, essa outra maneira de ser não é qualquer maneira, mas, simplesmente a maneira normal de ser. Será então sempre nessa ordem da normalidade, racionalidade que a loucura será concebida (FRAYZE-PEREIRA. 1985, p. 20).

Portanto, o indivíduo é doente sempre em relação: em relação aos outros, em relação a si mesmo. Isto significa que o próprio da loucura como “doença mental”, conforme a expressão médica é ser rebelde a uma definição positiva. Em outras palavras, é teoricamente muito difícil, senão impossível, definir a loucura em si mesma, como um fato isolado (FRAYZE-PEREIRA. 1985, p. 20).

Assim, em última análise, conclui-se que a relação normal-anormal, saúde-doença, está enraizada na cultura social e somente uma análise mais profunda, levando-se em conta todo um conjunto social, é que permitirá chegarmos a uma conclusão e compreensão da “doença” concretamente.


REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Texto e Grafia, 2008.

FRAYZE-PEREIRA. João A. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FUNK, Michelle; DREW, Natalie; SARACENO, Benedetto, Livro de recursos da OMS sobre saúde mental, Direitos Humanos e legislação. Organização mundial da saúde, 2005.

JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura: medida de segurança e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008.

OMS. Organização Mundial de Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10: Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas. 1993.

SOARES, Orlando. Incapacidade, inimputabilidade e preservação da saúde mental. v. 325. Rio de Janeiro: Forense, 1994.


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André Parmanhani

Advogado (RS)

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