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Dolo e culpa: uma reflexão necessária (Parte 2)

Como dissemos no último artigo publicado, o estudo sobre os institutos do dolo e da culpa no âmbito do Direito Penal são um fio condutor que pode nos levar a repensar, de forma objetiva, elementos, até então, entendidos e valorados de forma subjetiva no espectro criminal e na subsunção do fato à norma.

Ademais, ressaltamos que a velocidade com que a ocorrência dos denominados delitos informáticos vem crescendo e ocupando espaço na mídia e nos órgãos públicos de investigação, repressão e julgamento, nos impele a dedicar um estudo mais profícuo e sério a este tema, já que, mais do que nunca, nestas espécies criminosas, podemos ver, de forma clara e objetiva, que a distinção entre dolo e culpa e seus atuais contornos, não dão conta de atender aos critérios penais submetidos ao sistema.

Nesse sentido, a parte de uma pesquisa jurisprudencial aprofundada, que vimos realizando já há algum tempo – e sobre a qual logo os senhores leitores terão notícia –, dedicamos parte do estudo a buscar doutrinas variadas que tratam do tema, sempre almejando uma análise comparativa dos conceitos para, em um segundo momento, verificar os reflexos práticos das variadas concepções.

Iniciando nosso escorço histórico, buscamos e apresentamos ao leitor, no artigo anterior, as origens da denominada teoria da imputação objetiva, linha mestra deste estudo que nos conduzirá a perceber que a “valoração” teve peso crucial na construção da ideia de imputação, sendo que devemos partir dessa construção baseada na ideia de valoração para discutir e tentar redimensionar os contornos do dolo e da culpa para além daquilo que conhecemos hoje, objetivizando, como já dissemos, tais conceitos e tentando afastar, através de critérios objetivos, a subjetividade implícita em tais institutos.

Uma das principais obras dedicadas a este tema, sem dúvida é o estudo da Professora da Universidade de Bonn, INGEBORG PUPPE, intitulado “A distinção entre dolo e culpa”, traduzido para o Português por LUÍS GRECO e publicada no Brasil em 2004.

Nesta obra Puppe basicamente revisita a clássica distinção entre dolo e culpa, propondo que se realize tal diferenciação através de um critério baseado na qualidade do perigo conhecido pelo autor, revolucionando a dogmática do dolo, até então pensado e diferenciado da culpa com base em critérios de ordem interna.

Apresentamos a referida obra, pois que, é com base nela que iniciamos nosso estudo proposto, já que a obra da Professora Puppe é praticamente desconhecida no Brasil, não obstante tenha elementos essenciais para a discussão dogmática acerca do dolo e da culpa.

A magnitude da obra de Puppe, renderá algumas reflexões iniciais necessárias a este estudo, porém seria demasiada pretensão tentar resumir tal formulação teórica-acadêmica em um artigo como este, pelo que, utilizaremos, aos poucos, as ideias apresentadas pela Professora de Bonn, estruturando nossa pesquisa em um tripé jurisprudência-doutrina nacional-doutrina internacional, a fim de propiciar ao leitor e ao estudo em desenvolvimento elementos capazes de gerar um novo conhecimento sobre a temática em análise.

Para a continuidade da nosso proposta, iniciaremos a análise doutrinária da temática em si repensando, a partir da obra de Pupe, o artigo 18, inciso I do Código Penal – antigo artigo 15, inciso I do CP de 1940, reformado em 1984 – que trata do crime doloso e assim diz:

Art. 18 – Diz-se o crime:

I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

Já Nelson Hungria, em seus comentários ao código penal, na edição de 1978, dizia que não restava dúvida de que o Código Penal brasileiro havia dotado, no que toca ao dolo, a teoria do consentimento, ou seja, de que “o limite entre dolo eventual e culpa consciente seria dado pela aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado” (GRECO, 2004).

E assim vimos repetindo desde então, sem questionar tal dogma, sem refletir ou repensar tal afirmação. Puppe propõe para tal conceito uma ideia original que, se bem compreendida, como afirma Luís Greco, nos levará a verificar que a teoria do consentimento, hoje defendida quase que unanimamente na doutrina brasileira, representa, na verdade, “uma etapa talvez ultrapassada pela evolução da dogmática penal moderna” (GRECO, 2004).

Para aguçar nosso leitor, no espaço de hoje, traremos uma premissa doutrinária, da qual a Professora Puppe parte, necessária à compreensão da análise proposta, e introduziremos uma pequena amostra dessa ideia que, a nosso ver, reformulará totalmente a compreensão atual de dolo e culpa: o abandono da ideia de tripartição do dolo em favor de uma teoria unitária do dolo.

Na doutrina brasileira a ideia de tripartição do dolo é praticamente desconhecida, já que, pela letra fria da nossa lei – Código Penal – haveria apenas duas formas – dolo direto e dolo eventual –, sendo certo que, por outro lado, na doutrina alemã, desde há muito se fala em tripartição – dolo direto de 1º grau, dolo direto de 2º grau e dolo eventual.

Com isso, no dolo direto de 1º grau teríamos aquilo que o agente efetivamente quis obter; o dolo direto de 2º grau seria aquele dirigido aos efeitos colaterais que o agente sabe que estariam ligados à obtenção de sua finalidade precípua e, por fim, o dolo eventual se caracterizaria como aqueles efeitos colaterais tidos pelo autor como possíveis, mas não, necessariamente, como certos.

Em brilhante exemplo, Luís Greco nos apresenta a aplicação prática destes conceitos; utilizaremos seu exemplo a fim de facilitar a compreensão dos institutos trazidos: A quer matar B e, para tanto instala uma bomba em seu carro. A sabe que o motorista de B será inevitavelmente atingido pela explosão e não exclui que terceiros, pedestres ou ocupantes de outros veículos também venham a morrer ou ser feridos em razão da explosão, mas, “paciência”, diz ele.

Com a explosão da bomba B morre, bem como seu motorista e mais dois pedestres; outros dois pedestres ficam feridos. Como faremos a análise do dolo de A nas condutas referidas, utilizando a ideia de tripartição do dolo? Em relação a B, A teria agido com dolo direto de 1º grau; em relação à morte do motorista, A teria agido com dolo direto de 2º grau e, por fim, em relação às demais mortes e aos feridos, haveria dolo eventual de A.

Como dito antes, Puppe irá propor, para a distinção entre dolo e culpa, o abandono dessa ideia de tripartição – conceitos estes que nós, brasileiros, sequer chegamos a utilizar – e, a partir disso, a adoção de um conceito unitário de dolo, que seria, na posição de Greco e também na nossa, compatível com o direito positivo brasileiro e bastante útil para a leitura e a aplicação no atual Código Penal brasileiro.

No próximo artigo avançaremos na apresentação da proposta de Puppe e tentaremos realizar a releitura da ideia de dolo na lei material brasileira – Código penal – a partir dessa ideia alemã.


REFERÊNCIAS

GRECO, Luís. Imputação objetiva: uma introdução, in: ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. 3 ed. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, Introdução e Notas: Luís Greco. Barueri, SP: Manole, 2004.

GRECO, Luis. Um panorama da Teoria da Imputação Objetiva. 2 ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.

Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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