Dolo e culpa: uma reflexão necessária
Não é de hoje que a temática dolo e culpa no Direito Penal verdadeiramente atormenta boa parte da doutrina nacional estrangeira e não é para menos… Desde meu primeiro contato, ainda na Faculdade de Direito, com os conceitos de dolo e culpa, já me senti um tanto quanto incomodada – e olhe que eu nem imaginava, naquela época, a repercussão que tais conceitos tinham sobre a vida e a liberdade das pessoas –, ou seja, há algo muito, digamos, “estranho”, na ideia de dolo e culpa, pois se salta aos olhos de um estudante de Direito iniciante, que dirá para aqueles que se dedicam a entender, modificar e melhorar o sistema penal como um todo…
Se agregarmos a este fato a velocidade com que a ocorrência dos denominados delitos informáticos – prefiro crimes perpetrados por meio das novas tecnologias – vem crescendo e ocupando espaço na mídia e nos órgãos públicos de investigação, repressão e julgamento, veremos que um estudo mais profícuo e sério acerca deste “dilema” merece ser realizado, já que, mais do que nunca, nestas espécies criminosas, podemos ver, de forma clara e objetiva, que a distinção entre dolo e culpa e seus atuais contornos, não dão conta de atender aos critérios penais submetidos ao sistema.
Pensando nisso, iniciei uma pesquisa mais aprofundada sobre o tema, começando pela busca jurisprudencial da matéria junto aos Tribunais Superiores, tarefa esta que tomará muitas e muitas horas do meu dias, mas com certeza, renderá inúmeras surpresas e muitas outras reflexões, e gostaria, a partir de agora, de forma concomitante a dedicar parte da pesquisa a buscar doutrinas variadas que tratam do tema, sempre almejando uma análise comparativa dos conceitos para, em um segundo momento, verificar os reflexos práticos das variadas concepções.
Assim, gostaria de compartilhar com o amigo leitor a busca que estou me propondo a fazer, objetivando, com isso, contar com uma participação ativa de cada um de vocês nesta construção ideológica, pois que, de doutrinas formadas e opiniões inamovíveis, já estamos fartos…
Disso tudo, me parece de bom tom, iniciar a reflexão por um “passeio” histórico, no qual buscaremos as origens da denominada imputação objetiva, linha mestra que deverá nos conduzir pelos caminhos que estamos procurando adentrar.
Historicamente só se começa a falar em imputação a partir do momento em que se admitir que a teoria do delito não se esgota em descrições ou verificações de fatos, mas constitui um conjunto de valorações a que se há de submeter determinado fato para que ele possa ser considerado um crime. Este momento é aquele em que se dá a transição do naturalismo para o neokantismo.
No final do século XIX a teoria dominante era a do naturalismo que não considerava a dimensão valorativa da ciência jurídica sequer seus conceitos. Nessa perspectiva as ciências seriam a Física, a Biologia e a Psicologia. O Direito, para assim ser considerado, deveria construir conceitos a partir do método empírico e avalorado dessas ciências da natureza.
Nessa visão, conceitos valorados eram simplesmente acientíficos. Dai, portanto, o conceito de ação na teoria naturalista do crime não passar de uma causação voluntária de uma modificação no mundo exterior. O tipo, nesse sentido, também se esgotava na descrição desta modificação do mundo exterior sendo, portanto, valorativamente neutro. A culpabilidade, por sua vez, pautava-se na relação subjetiva entre autor e fato, relação esta psicológica; e a antijuridicidade perdia sua carga valorativa sendo reduzida a uma dimensão puramente lógica, já que, por definição, não poderia ser apreendida em termos empíricos, sendo conceituada como “relação de contrariedade entre o comportamento e as normas da ordem jurídica” (GRECO, 2002).
Num sistema desta natureza a questão da imputação não existe; cabia, ao juiz, uma análise única da verificação dos elementos descritivos de que se compunham o tipo e a culpabilidade: causando o autor o resultado, preenchido estaria o tipo; sendo tal causação prevista ou minimamente previsível, haveria culpabilidade; não havia o que se valorar, bastava verificar a descrição.
Nessa perspectiva o naturalismo torna-se insuficiente e, no começo do século XX, começa a ganhar força a ideia neokantiana que vem questionar a premissa segundo a qual somente as ciências naturais seriam ciência. Nesse contexto, ao lado das ciências da natureza, haveria as ciências da cultura que trabalhariam com um método próprio, o método referido a valores, categoria na qual estaria o Direito.
Com isso a teoria do delito normativiza-se, passando a ser compreendida como um conjunto de valorações, causando a crise da teoria da causalidade. Para esta nova perspectiva o tipo não é meramente a descrição de um acontecimento externo, mas sim a antijuridicidade tipificada, ou seja, a análise do fato sob a perspectiva de sua lesividade social; a culpabilidade abandona a ideia de mera descrição de um estado psíquico para tornar-se a avaliação do fato tendo em vista a reprovabilidade do autor.
Neste contexto, em que o tipo deixa de ser só causalidade, começa a surgir a possibilidade de se questionar o que faz de uma causação qualquer uma causação típica e, a partir desse momento, passa a interessar às teorias jurídicas o problema da imputação.
E é ai que surge a possibilidade de se discutir a imputação como teoria, sendo que a moderna teoria da imputação consiste basicamente em um conjunto de pressupostos que fazem de uma causação uma causação típica: criação e realização de um risco não permitido em um resultado.
Pela análise histórica pode-se perceber que a “valoração” teve peso crucial na construção da ideia de imputação, sendo que devemos partir dessa construção baseada na ideia de valoração para discutir e tentar redimensionar os contornos de dolo e culpa para além daquilo que conhecemos hoje, objetivizando tais conceitos e tentando afastar, através de critérios objetivos, a subjetividade implícita em tais institutos.
Conto com os amigos leitores nesta caminhada jurídica!
REFERÊNCIAS
GRECO, Luís. Imputação objetiva: uma introdução, in: ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. 3 ed. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.