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Domínio da posição, presunções legais e a AP 953/STF

Domínio da posição, presunções legais e a AP 953/STF

Desde a AP 470/STF, vulgo “mensalão”, a jurisprudência nacional vem sedimentando o entendimento sendo o qual a mera ocupação de posição de gerência ou grau hierarquicamente elevado em organizações empresariais funda a base necessária para imputação penal.

Não foram poucas as manifestações da melhor doutrina em sentido contrário, demonstrando que a aplicação feita da teoria do domínio fato havia deformado seu conteúdo e instrumentalizado a mesma com propósitos diametralmente contrários daqueles pelos quais ela foi cunhada.

Também foi profícua a doutrina em revelar que este entendimento dá vazão a uma forma de responsabilização objetiva, incompatível com o direito penal constitucional.

Mesmo assim, os tribunais superiores permaneceram recalcitrantes em sua posição a favor da imputação com base no domínio da posição (versão brasileira do domínio do fato).

Ainda na AP 470/STF, a Ministra Rosa Weber admitiu despudoradamente a “presunção relativa de autoria no caso de dirigentes de empresas”.

Dada essa manifestação específica, cabe uma palavra de alerta a respeito do termo “presunção”. Em rápida pesquisa nas legislações pátrias, é possível perceber que o instituto da “presunção” opera, regra geral, no sentido de garantia do cidadão contra o Estado ou contra a parte que alega, no caso do direito civil, ação contrária ao direito contra si.

No direito penal, as diversas “presunções” positivadas concretizam obstáculos a serem transpostos no curso da análise de tipicidade (nexo causal e imputabilidade objetiva inclusos), ilicitude e culpabilidade daquele que se vê diante de um poder com capacidade infinitamente superior que a sua própria para produzir provas.

Significa dizer que o legislador aponta estas presunções com o fito de não atribuir ao acusado o ônus de comprovar sua inocência, tarefa muitas das vezes impossível, mas reforçar a lógica geral da responsabilidade subjetiva, segundo a qual caberá ao acusador a tarefa de superar o obstáculo das “presunções” para imputar a determinado agente determinada ação ou omissão.

Presunções funcionam nesta lógica, repita-se, como juízos a priori, vinculantes. São colocados em nosso ordenamento com o fim precípuo de oferecer uma barreira prévia, a ser suplantada por aquele que acusa. Alguns exemplos do uso do instituto da “presunção” deixam isso claro: 

- PRESUMEM-SE verdadeiros os fatos não contestados no prazo cabível (art. 344 CPC/2015). 

- PRESUMEM-SE em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação (art. 208§4º CPC/2015). 

- As leis emanadas pelo poder legislativo possuem PRESUNÇÃO relativa de constitucionalidade (dedução do cabimento da ADECON - Art. 102, I, “a” da CF/88).

Estes exemplos demonstram que a presunção é um elemento de juízo feito ex ante, estabelecido legalmente, com intuito de evitar a prova impossível ou extremamente difícil de ser produzida, garantir celeridade ao processo e outros fins legitimamente buscados no ordenamento jurídico. 

Assim, a presunção estabelece uma espécie de pré-julgamento que só pode ser suprimido, ou melhor, superado, se obedecido os rigores do devido processo legal (com seus obrigatórios elementos, entre os quais: ampla defesa, contraditório e juiz natural – CF/88 Art 5º XXXVII, LIV, LV).

É verdade que existem casos em que a presunção funciona contra o acusado (como no caso da prisão em flagrante delito – art. 302, IV CPP), mas o que se quer afirmar aqui não é a impossibilidade do estabelecimento deste seu viés, mas assentar o seu princípio fundamental, ou seja, de que a presunção é um instrumento rigoroso de juízo antecipado, só podendo ser utilizado dentro dos limites claramente estabelecidos em lei, sendo dada preferência a seu uso no sentido de fornecer garantias ao cidadão em posição de fragilidade no que diz respeito a produção de provas.

Diante do exposto, fica claro que subverter a noção de presunção para imputar responsabilidade penal objetiva ao acusado traduz uma enorme violência a pressupostos básico do sistema de justiça de um Estado Democrático de Direito.  

Voltando ao ponto principal, a tendência jurisprudencial apontada não se fez sentir apenas nos tribunais superiores. Basta digitar, nos diversos sistema de busca jurisprudencial dos TJ/TRF e encontraremos um rol extenso de decisões calcadas, inclusive, nas decisões do STF (em especial a AP 470/STF), ou na suposta aplicação “jabuticaba” da teoria do domínio do fato.

Sendo assim, é salutar destacar e divulgar manifestações jurisprudenciais em sentido contrário, que vão de encontro a este entendimento e procuram restabelecer os limites jurídicos da imputação penal segundo os moldes constitucionalmente delineados em nosso país.

Cabe neste momento mencionar a decisão do próprio STF, com relatoria do Min. Luiz Fux, na AP 953/STF, publicada em 27/04/2017 (grifos acrescentados):

Direito Processual Penal. Falta de correlação entre conduta e denúncia. Crimes de responsabilidade de prefeito e vereador. Individualização da conduta de cada agente. Denúncia inepta. (...) 3. A responsabilidade penal é sempre subjetiva, por isso que é absolutamente inadmissível a atribuição, em sede penal, de responsabilidade objetiva pela prática criminosa, consistente na atribuição de um resultado danoso a um indivíduo, unicamente em razão do cargo por ele exercido. 4. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sedimentou a compreensão de que “A circunstância objetiva de alguém ser meramente sócio ou de exercer cargo de direção ou de administração em sociedade empresária não se revela suficiente, só por si, para autorizar qualquer presunção de culpa[...]. Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o dogma da responsabilidade com culpa(nullum crimen sine culpa)absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do versari in re illicita”, banida do domínio do direito penal da culpa” (HC 88.875, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, unânime, j. 07/12/2010, DJE 09/03/2012, Public. 12/03/2012).

Espera-se que este posicionamento ganhe forças, consolidando-se na Corte Constitucional e espraiando-se para tribunais de instância inferior. Solidificar a responsabilidade subjetiva em matéria penal pode parecer, às vezes, um obstáculo muito caro no enfrentamento de alguns delitos, enfaticamente os “crimes de colarinho branco”, mas é um preço necessário para estruturação segura de um sistema de justiça criminal minimamente democrático.


REFERÊNCIAS

LEITE, Alaor. Domínio do fato ou domínio da posição? autoria e participação no direito penal brasileiro. Curitiba: Centro de Estudos Professor Dotti, 2016.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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