Por que a dor do outro gera satisfação?
Por que a dor do outro gera satisfação?
Eis uma questão que me incomoda. Atordoa. Deixa feridas. É incompreensível. Me faz desacreditar no ser humano. Por que, afinal, a dor do outro gera satisfação? Por que, afinal, as pessoas comemoram os fracassos, a tortura, a dor, a morte de outro indivíduo?
Eu não sei desde quando passei a me sentir constrangida com isso. Por um período que não me orgulho, tive um pensamento muito “justiceiro e punitivista”. Aos poucos, mediante pesquisa e influência de pessoas fantásticas que fui conhecendo, consegui me desvencilhar desse pensamento do senso comum.
Talvez o ponto mais marcante foi em uma palestra do Amilton Bueno de Carvalho, em que ele fazia um questionamento semelhante. Me fez refletir… ainda faz.
Ora, caros colegas, estudantes, simpatizantes, leitores. Vivemos uma situação caótica no que diz respeito à criminalidade. As pessoas estão cada vez mais destinadas ao isolamento, colocando a segurança em primeiro lugar em qualquer lista, com medo de tudo e de todos.
Justificam, então, que isso ocorre em razão de o Brasil ser o “país da impunidade”. Não percebem (ou não querem perceber) que possuímos a quarta maior população carcerária do mundo, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça. 622.202 pessoas presas em dezembro de 2014. Ainda, “o perfil socioeconômico dos detentos mostra que 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo”.
Como não perceber que há algo errado, muito, muito, muito errado?
Nosso país ainda é extremamente falho no que diz respeito às políticas públicas. São infinitos cidadãos vivendo em situações indignas que enfrentam a violência cotidiana da invisibilidade “na fila interminável de um precário posto de saúde, na obrigação de deixar filhos pequenos cuidando de filhos ainda menores, na escola com salas superlotadas, nas estatísticas de desemprego ou nas habitações sem esgoto” (DIMENSTEIN, 2014, p. 17).
Por que a dor do outro gera satisfação? Por que não vemos quase ninguém querendo a efetivação de direito para todos, como preconiza a nossa Constituição Federal? Por que as lutas acabam se voltando para o lado negativo da coisa, aquele que não gera resultados efetivos? Se pugnar pela prisão de alguém trouxesse benefícios, nosso país estaria com índices de criminalidade baixíssimos. Porém as estatísticas mostram algo muito distante disso.
Em sua fase primitiva, o direito penal servia como vingança. A vingança privada teria sido abolida para que o Estado assumisse esse controle. Hoje, no entanto, não poderíamos dizer que o Estado se apropriou da ideia de vingança?
Hoje eu me pergunto o que o martírio do Zequias me trouxe. A tortura desse rapaz, na cela, com o consentimento dos carcereiros exigida pelos outros prisioneiros, eliminou a dor da jovem estuprada, apagou a violência de sua memória? Com certeza ela nem soube.
Era tudo um jogo particular, encerrado entre quatro paredes, desfrutado por aqueles que estavam entre as muralhas da prisão, dentro de uma noção de falsa justiça, que servia apenas para dar vazão às frustrações e ao sadismo de presos e carcereiros.
Hoje sei que o Estado, através das leis que são aprovadas pelos representantes da sociedade, é que se reserva o direito da punição. Qualquer castigo violento exercido fora dos olhos da lei é um crime. Mas ali, no cárcere, os únicos agentes do Estado presentes eram os agentes prisionais. Nem por isso eles deixaram de incentivar a tortura, de modo quieto, mas tão insistente quanto os apelos cruéis dos outros presos.
Eu me pergunto se ter judiado do Zequias tornou-me uma pessoa melhor. Do mesmo modo, a mesquinhez perversa dos carcereiros, colocando-o de volta em nossa cela depois da primeira agressão, tornou-os pessoas melhores, que realizaram algo pela sociedade?
Os policiais que me espancaram a coronhadas, na minha primeira prisão, se tornaram pessoas melhores por terem exercitado essa violência? E aqueles que me colocaram no pau-de-arara ou que me bateram, apenas para me “ensinar a ser um bom preso” – são eles pessoas melhores?
Os funcionários da FEBEM, sempre com pedaços de pau nas mãos e o desejo aberto de usá-los contra os internos, são eles melhores, mais humanos? O que os torna diferentes do patrão da droga, que manda quebrar as pernas do viciado que deve a ele? Você convidaria cada um deles, cada um de nós envolvidos nesse círculo de violência, para assistir a um jogo de futebol em sua casa, ou para sermos padrinhos dos seus filhos?
Talvez aqueles que realizam atos violentos supostamente em nome de um código não escrito de vingança, em nome da sociedade, sejam tão desprezados quanto aqueles que sofrem essa violência. Ou tão maculados quanto os que a desejam.
Talvez estejamos todos de mãos dadas, girando em uma ciranda sem sentido que não elimina dor alguma, não traz justiça alguma ao mundo, mas apenas reafirma e propaga essa mesma violência, mantendo a sua lembrança e a sua prática vivas e lançando-as para o futuro, para que você e eu, para que os meus filhos e os nossos filhos possam vir a sofrer com ela, amanhã. Alguém tem que romper essa ciranda (EVANGELISTA, 2004, p. 108/110).
Por que a dor do outro gera satisfação? É necessário (re)pensarmos qual o caminho que queremos trilhar. Quem hoje comemora a flexibilização das garantias constitucionais esquece que poderá também ser atingida por elas. E aí verá, talvez tarde demais, que não há motivos para celebrações.
A morte de um ser humano não deve ser motivo de felicidade. Ainda mais quando ela demonstra a falha do Estado, do qual todos fazemos parte e temos nossa parcela de responsabilidade.
REFERÊNCIAS
DIMENSTEIN, Gilberto. O mistério das bolas de gude: histórias de humanos quase invisíveis. São Paulo: Papirus, 2014.
EVANGELISTA, Cleonder. Luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da FEBEM. São Paulo: Arte e Ciência, 2004.