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Dostoiévski e o Direito

Dostoiévski e o Direito

A Literatura, especialmente com a popularização do gênero “romance”, a partir do século XIX, consolidou o seu papel como fonte de discussão da sociedade, suas modas, usos e costumes.

Recentemente, uma nova corrente de estudos chamada apropriadamente de “Direito e Literatura” visa a incluir nessa discussão questões políticas e jurídicas.

Há um sem número de romances cuja leitura se propõe a essa discussão: 1984, de George Orwell; O processo, de Franz Kafka; O sol nasce para todos, de Harper Lee; Os miseráveis, Victor Hugo; A morte de Ivan Ilitch, Leon Tolstói; Os irmãos Karamázov e Crime e Castigo, Fiódor Dostoiévski; A letra escarlate, Nathaniel Hawthorne. Essa lista continuaria por páginas e páginas.

Pura fantasia de um gênio ou baseada em fatos históricos, a Literatura é espelho da sociedade, servindo como base para discussões éticas, jurídicas e filosóficas.


Sobre Dostoiévski, leia também:

  • O despertar do direito sobre a literatura (aqui)
  • Para ler: Crime e Castigo (aqui)

Dostoiévski é um dos autores favoritos pela escola “Direito e literatura”. Não é para menos. Suas obras trazem um retrato não apenas da sociedade russa de seu tempo, mas do homem universal. Em seus romances, nobreza e a plebe tem igual importância. Não importa tanto a classe social abordada, Dostoiévski faz um retrato profundo da psicologia humana, sem jamais deixar de considerar o papel do ambiente na formação de cada ser humano.

A célebre obra “Crime e castigo” conta a trajetória do jovem Raskóllhnikóv, um estudante de Direito atormentado pela miséria na Rússia do século XIX. A sinopse do romance é conhecida: cada dia mais atormentado pela fome, miséria, tendo abandonado os estudos na faculdade, o jovem assassina uma idosa, que penhorava objetos e emprestava dinheiro a miseráveis como ele.

O que o leva a cometer o assassinato, em suas divagações, era a certeza de que a velha usurária “merecia” o assassinato, pois ganhava sua vida tirando o pouco que miseráveis como ele tinham. O crime em si não sai como ele planeja e, além da idosa ele assassina uma testemunha, que surge do nada.

A culpa, misturada ao pavor de ser descoberto pela investigação policial, levam-no a se entregar às autoridades. O jovem cumpre pena na Sibéria. Sonia, jovem prostituída a mando da própria família, a quem Raskóllhnikov conhece em sua trajetória de dor, arrependimento e miséria, vai com ele como sua companheira.

Além da análise magistral da miséria de seus personagens, retrato válido para a Rússia do século XIX e para o mundo moderno, Dostoiévski mergulha profundamente na mente do criminoso atormentado. No livro, as próprias autoridades tratam o jovem miserável não como um psicopata, mas como alguém que merece uma pena benigna e perdão por sua conduta reprovável:

No entanto, a sentença foi mais benigna do que poderia esperar-se, tendo em conta o gênero do crime cometido; e talvez por o réu não ter querido justificar-se, mostrar até desejo de agravar sua culpa. Todas as circunstâncias estranhas e especiais do caso foram tomadas em consideração. A situação patológica e a miséria do criminoso, antes do cometimento do crime, não se prestavam à mais leve dúvida. Por não ter ele aproveitado do roubo, atribuiu-se em parte aos efeitos do arrependimento sentido, e em parte ao mau estado de suas faculdades mentais na época em que cometeu o crime. (Crime e castigo, pg. 609).

Nesse trecho, a ficção é mais benéfica do que a realidade. No dia-a-dia forense, a última coisa que se vê ser aplicada por nossos juízes e promotores é a miséria do agente criminoso ser uma atenuante para a pena aplicada. Apesar de alguns doutrinadores defenderem em suas obras o princípio da coculpabilidade, tal não se vê na jurisprudência penal:

Mais recentemente alguns autores falam ainda de coculpabilidade como circunstância supralegal de atenuação da pena. É que há casos em que as condições socioeconômicas do agente são de tal modo adversas que o juiz, ao proceder à individualização da pena, não pode ignorá-las, devendo atenuar-lhe o castigo por isso, desde que haja relação casual entre tais condições e o delito cometido, motivo pelo qual a sua aplicação ocorrerá principalmente mas não exclusivamente, nos crimes contra o patrimônio.

Alguns códigos penais a referem expressamente, embora sem recorrer, em geral, a essa denominação, como o Código colombiano, ao dispor que a pena será atenuada se o autor praticar a infração penal sob a influência de profunda situação de marginalidade, ignorância ou pobreza extrema que hajam influenciado diretamente o cometimento do crime e não sejam suficientes para excluir a própria responsabilidade jurídico-penal (art. 56).

Trata-se, portanto, de um conceito que se aproxima muito do estado de necessidade da inexigibilidade de conduta diversa (…).” (Curso de Direito Penal, vol. 1, Paulo Queiroz, pg. 376).

A doutrina brasileira, em sua imensa maioria, não aceita a teria da coculpabilidade, havendo pouca literatura a respeito. A miséria como atenuante do criminoso, portanto, continuará exclusivamente na ficção.

Em “Os irmãos Karamázov”, Dostoiévski continua em sua temática crime e criminoso, e vai além. Na trama, o patriarca indolente e negligente com seus filhos é assassinado. As suspeitas, claro, recaem sobre os seus três filhos legítimos:

Fiódor Pávlovitch, tão conhecido em seu tempo (dele se lembram, aliás, ainda) pelo seu fim trágico, ocorrido há treze anos e de que falarei mais adiante. (…) Fiódor Pávlovitch, por exemplo, começou quase do nada: era um modesto proprietário, gostando muito de jantar em casa dos outros, com fama de parasita. E no entanto, ao morrer, possuía mais de 100.000 rublos em metal sonante. (pg. 13).

Teve duas mulheres. Com a primeira, teve Dimítri, um jovem mundano, tão farrista quanto o pai, sempre envolvido com álcool e mulheres. Com a segunda, teve Ivan e Alieksiéi. Os jovens mal se conheciam e foram criados separadamente. Aliocha, o herói, havia escolhido a vida monástica.

Ivan e Dimítri se reaproximaram do pai ainda em vida unicamente por causa do dinheiro. Ivan, apesar de um tanto cínico, havia frequentado a universidade e era reconhecido como um jovem de grande inteligência, sendo um autor de artigos respeitado mesmo fora dos círculos universitários.

Ao intelectual Ivan é atribuído o célebre questionamento: Se Deus não existe, tudo é permitido? A frase não aparece de forma literal, mas é decorrente das falas do personagem. Ivan apresenta-se como um ateu cínico, e seus questionamentos e observações permeiam a obra. Com o pai ainda vivo, ele e Aliócha travam a seguinte conversação:

-Pois bem, por consequência, sou também um homem russo, com a mesma característica russa, e tu, filósofo, podes ser apanhado com uma característica do mesmo gênero. Queres que te apanhe? Apostemos que será amanhã. Mas dize-me, no entanto, há um Deus ou não? Somente é preciso que me fales seriamente.

-Não, não há Deus.

– Aliócha, Deus existe?

-Sim, existe.

-Ivan, há imortalidade? Por pequena que seja, por mais modesta?

– Não, não há.

– Nenhuma?

– Nenhuma.

– Quer dizer, um zero absoluto, ou uma parcela? Não haveria uma parcela?

– Um zero absoluto.

– Aliócha, há imortalidade?

– Sim.  (pg. 105).

O principal suspeito do assassinato acaba sendo Dimítri, pelo dinheiro e porque disputava com o pai o amor de uma mulher, Grúchenka, pela qual abandonara sua noiva. Seu estilo de vida libertino só depõe contra o mesmo, que sustenta sua inocência.

Dimítri é preso, levado a julgamento e condenado a vinte anos de trabalho forçado na Sibéria. O julgamento é mostrado como um grande espetáculo de atuações, e não como uma busca pela verdade e justiça. As pessoas, o público, o promotor, o juiz, estavam mais interessados no espetáculo, no triângulo amoroso entre pai, filho e uma mulher, na raiva da noiva traída, do que na busca do verdadeiro assassino.

Pois, no fim, Dimítri era inocente, e foi condenado por um crime que não cometeu. Afinal, o assassino era Smierdiakóv, o criado, que confessa tudo a Ivan antes de se matar. Mais, ele acusa Ivan de corrompê-lo com suas ideias filosóficas, notadamente a crença de que Deus não existe e, portanto, tudo é permitido. Ivan enlouquece. Mesmo abalado em sua lucidez, depõe no tribunal do Júri, a fim de inocentar o injustiçado Dimítri. Seu depoimento é desconsiderado.

O romance de 535 páginas é por demais abrangente e complexo para ser resumido levianamente. O que mais interessa do ponto de vista jurídico é a condenação de um inocente, a noção do Tribunal do Júri como um teatro para as massas: ganha quem representar melhor.

Assim como no também célebre romance “Alias Grace”, da reconhecida autora canadense Margaret Atwood, o que o público quer é um assassino, que alguém seja condenado, seja lá quem for, para que a sociedade possa respirar aliviada, com uma falsa sensação de segurança, sem se atentar para os numerosos erros de investigação e do Judiciário que estragam a vida de inocentes todos os dias, desde que o mundo é mundo.

Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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