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Dr. Frankenstein e os Ladrões de Corpos no século XIX


Por Vitor da Matta Vívolo


Resultado de um pesadelo numa noite de tempestade, escrita há duzentos anos atrás (por uma jovem de dezesseis anos de idade!), a história do inescrupuloso Dr. Victor Frankenstein já nos é notória dentro do imaginário popular. Publicado em 1818, Frankenstein; ou o Prometeu Moderno gerou grande escândalo por sua morbidez e moralidade duvidosa perante a religiosa sociedade vitoriana.

Nos é bastante conhecida a cena de reanimação cadavérica, tão bem representada por Colin Clive e Boris Karloff na adaptação monocromática de 1931, em que o monstro – um amontoado de partes costuradas, cabeça achatada e eletrodos no pescoço – ganha vida sobre a mesa do laboratório. No entanto, a obra de Mary Shelley originalmente pôs em pauta discussões não só morais como legais, em relação à utilização de cobaias cadavéricas pela medicina oitocentista.

A dissecação de corpos humanos por estudantes de medicina remonta aos tempos antigos, sempre gerando polêmicas em torno da sacralidade dos mortos. A demanda e, principalmente, a escassez de corpos para o estudo de anatomia faz parte das próprias raízes da arte em si.

Se Dr. Victor Frankenstein fosse realmente um sujeito real, lidaria com estatísticas pouco animadoras em seu tempo. Dentro da área de estudos medicinais, uma crise assolava os estudantes desde o século XVIII: a lei pressupunha, desde 1565, que a quantidade de corpos disponíveis para dissecação seria determinada por assassinos condenados à pena de morte, incluindo a “doação” involuntária de seus corpos sem vida. Punição esta vista como humilhante, alimentando o sentimento popular de que doar um corpo à medicina era comparar-se a um homicida.

A títulos numéricos, em 1828, registrava-se oitocentos alunos cursando escolas de anatomia, destes, quinhentos afirmavam trabalhar com dissecação; enquanto o fornecimento de corpos oficial beirava quatrocentos e cinquenta ou quinhentos por ano (BAILEY, 1896, Cap II), ou seja, menos de um por aluno. E, três anos depois, os números oficiais registraram que onze corpos foram feitos disponíveis legalmente, numa época em que cerca de novecentos alunos estudavam anatomia na cidade de Londres (MACDONALD, 2006, p. 11).

A pouca oferta e grande procura deu abertura à criação de uma nova, digamos, carreira profissional:  as gangues de “ressurrecionistas”. Lidavam diretamente com os professores de anatomia, estabelecendo um mercado estável a ponto de regularem inflação de preços quando oportuno, utilizando-se de propinas e até chantagens. Eram grupos de homens e, ocasionalmente, mulheres que adentravam cemitérios durante o anoitecer e violavam túmulos frescos.

Familiares assustados contratavam seguranças armados para zelar por seus mortos e os escândalos jornalísticos eram tantos que causavam apedrejamentos e alvoroços populares a qualquer hora do dia: suspeitos eram linchados publicamente, a ponto de um pobre motorista de carruagem fúnebre ser confundido com um ladrão de corpos e quase terminar assassinado pela multidão furiosa.

Na Inglaterra de 1800, por lei, roubar cadáveres não era delito. O corpo em si pertencia à Igreja, à salvação espiritual. A Lei respondia e protegia apenas aos bens “materiais” dos indivíduos, o que, à época, não pressupunha seus próprios corpos. Os únicos casos criminosos que poderiam ser registrados necessitavam basear suas acusações na categoria “furto de bens”. Um cadáver roubado nu não configurava crime, mas um cadáver roubado vestido com uma meia, por exemplo, poderia ser utilizado como pressuposto para emprego da legislação.

De acordo com um diário de 1811, o modus operandi dos “profissionais” da área, floreios literários a parte, dava-se basicamente da seguinte maneira:

No caso de uma cova limpa, ou não muito nova, a criatividade do ressurrecionista entrava em jogo. Alguns pés – quinze ou vinte – afastado da cabeceira ou da margem inferior da cova, ele removeria um quadrado de grama, com cerca de dezoito ou vinte polegadas de diâmetro. Isso ele colocaria de lado e começaria a cavar. A maioria dos túmulos mais humildes eram de mesma profundidade e, se o sepulcro era de alguém importante, a profundidade da cova seria mais ou menos estimada através da natureza do solo sobre ela. (…) O caixão [seria] levantado por ganchos até a superfície, ou, preferivelmente, o fim do caixão era arrancado por ganchos enquanto ainda no túnel… e a careca ou os pés do cadáver segurados pela abertura, e o corpo puxado, deixando o caixão praticamente intacto e no lugar.  (BAILEY, 1896, Cap. II)

Cena tão detalhada não é presente no romance de Mary Shelley. Enquanto Dr. Frankenstein reúne os materiais necessários para a construção de sua criatura, nos diz que, por sorte, sua infância fora afastada de superstições. No entanto, as questões morais envolvidas no roubo de corpos são aparentes:

Quem seria capaz de imaginar os horrores de minha empresa secreta, profanando sepulturas úmidas, torturando animais vivos, só para animar o barro sem vida? (…) Recolhi ossos em necrotérios, perturbei com dedos profanos os segredos tremendos do corpo humano. Era num quarto, ou melhor, numa cela solitária no alto da casa, separada de todos os outros apartamentos por um corredor e uma escada, que ficava a oficina onde eu perpetrava minha criação imunda; tinha os olhos já cansados de tanto me concentrar nos detalhes de meu serviço. A sala de dissecção e o matadouro forneceram a maior parte de meu material; e com frequência minha própria natureza humana ficava repugnada com aquele trabalho que, impelido por uma impaciência sempre crescente, eu estava prestes a concluir. (SHELLEY, 2006, p. 62-3)

Victor Frankenstein, portanto, adquiriu os “materiais crus” necessários para seu projeto tanto com as próprias mãos quanto com a ajuda de matadouros e salas de dissecção. Não é inconcebível pensarmos que poderia ter obtido ajuda dos próprios ressurrecionistas e professores de anatomia locais, desovando corpos e ossos a preços estipulados pelo mercado negro. Mercado este que incluía o roubo de pacientes recém-falecidos em hospitais, muitas vezes os próprios médicos tomavam os mortos que sabiam não possuir nenhum parente para reivindicar seus corpos. Ressurrecionistas, inclusive, se passavam por parentes preocupados e rondavam os casos terminais a fim de levar o corpo do morto “de volta para a família”. Obviamente, o percurso final era do hospital para a escola de anatomia. É tragicamente cômico o cenário criado nos hospitais da época: “quem chegasse primeiro” levava o “prêmio”.

O romance de Mary Shelley se prova, então, intrinsecamente embebido nos debates anatômico-científicos de seu século, mas não pôde antecipar a legalização da doação de corpos para estudos anatômicos, um ano depois da última edição de sua obra, em 1831.

Por três anos batalhando para que a proposta de lei regulamentando as escolas de anatomia e suas cobaias fosse aprovada, os professores obtiveram sucesso. Em 1829, seus projetos foram rejeitados, mas em dezembro de 1831, retomados graças a um escândalo público que inundou as mídias: um mês antes, John Bishop, James May e Thomas Williams mataram o jovem Carlo Ferrari, de quatorze anos de idade, fraturando sua espinha a fim de vendê-lo para professores de anatomia.

O choque popular foi tão grande que o momento oportuno para outra tentativa da proposta de lei surgiu, sendo finalmente aprovada por quase unanimidade e entrando em vigor em agosto de 1832 como Uma Lei Para Regular Escolas de Anatomia: dissecação não faria mais parte da sentença de morte; mortos não reivindicados por familiares em hospitais, prisões e fábricas poderiam suprir a demanda de corpos; todas as escolas e professores de anatomia deveriam obter licença para exercerem suas atividades e estariam sob vigilância do Estado, era permitida a doação de corpos voluntária para fins anatômicos e todos eles seriam devidamente sepultados após o procedimento. Decidiu-se também que era violação legal profanar túmulos, aposentando ressurrecionistas e facilitando o progresso científico.

Percebamos que o debate ético sobre utilização e doação de cadáveres ainda persiste, seja nas exposições de cadáveres plastificados de Gunther von Hagens ou nas recentes estatísticas da Universidade de São Paulo: nos cinco primeiros meses de 2015, apenas cinco corpos foram doados para estudo. Atualmente, são cerca de cento e oitenta alunos para cada exemplar disponível.

Nos é interessante, no entanto, estar atentos aos ecos da própria história da medicina e criminalística em tais discussões. O mito de Frankenstein não vive apenas nas máscaras de plástico verde do Halloween, mas através da própria bioética da nossa modernidade.


Vitor da Matta Vívolo – Historiador, com ênfase em Século XIX e Belle Époque, atuando principalmente nos seguintes temas: Medicina e Conhecimento Científico através da Literatura e Ficção. Atualmente é mestrando em História Social pela PUCSP, sob tema Gastão Cruls e a Auscultação da Sociedade Brasileira.

Vitor da Matta Vivolo

Historiador. Mestrando em História. Pesquisador com ênfase no Século XIX e Belle Époque.

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