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“Dr., você não tem vergonha? Quer que eu imprima a Lei de Abuso de Autoridade para você apontar a conduta?”

“Dr., você não tem vergonha? Quer que eu imprima a Lei de Abuso de Autoridade para você apontar a conduta?”

Fala-se que todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput da Constituição Federal), mas será que existe essa igualdade dentro das salas de audiências e/ou nos tribunais? 

Em todo processo existe uma estrutura triangular, onde às laterais do triângulo estão situadas as partes processuais que digladiam em opostos interesses e, acima delas, na ponta da pirâmide, está o juiz, o qual deve guardar equidistância das partes para, no momento de proferir decisão, não ter maculada sua imparcialidade (FERRAJOLI, pp. 534-535).

É inegável que o juiz deve manter uma postura de neutralidade em relação às partes processuais por vários motivos, em especial, assegurar a isonomia – igualdade de tratamento entre os sujeitos do processo. No direito penal, essa relação processual é constituída pelo defensor, promotor e pelo juiz. 

Toda construção normativa tem por finalidade regular uma relação social conflituosa, logo, a isonomia objetiva que sejam tratados em mesmo grau de igualdade os sujeitos do processo, a fim de lhes possibilitar o exercício de seu mumus com a liberdade que o cargo lhe atribui. 

A Lei 8.906/94 aduz que não existe hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público (art. 6º, caput).  A vedação à hierarquia tem por finalidade, estabelecer tratamento igualitário entre esses sujeitos, evitando, portanto, que haja submissão de um em relação ao outro. 

A regularidade, bem como o controle desse tratamento igualitário está para o magistrado, vez que as partes processuais estão em oposição de interesses, assim, conflitos podem facilmente surgir entre elas. Mas se o conflito partir do magistrado para uma das partes processuais? 

Na estrita análise interpretativa dos princípios constitucionais, extrai-se que a república brasileira é constituída como estado de direito (art. 1º, caput da Constituição Federal), o que dá margem para se afirmar que os representantes do estado, sejam em qualquer esfera, são estritamente vinculados à legalidade, ou seja, não pode fazer o que a lei proíbe, da mesma forma que não podem fazer o que a lei não permite. 

Nesse tomo, anteriormente, havia a Lei 4898/65 – Lei de Abuso de Autoridade, a qual regulava os limites da atuação dos agentes que atuassem investidos e revestidos do poder estatal. Recentemente, a Lei 13.869/19, a revogou e passou a regular os limites da atuação dos agentes que atuam revestidos de autoridade no exercício da função pública à qual estão investidos, entre eles, os magistrados. 

Dessa forma, todo e qualquer magistrado encontra limites para uso do poder que a função por ele exercida lhe confere nos direitos e garantias fundamentais do jurisdicionado, assim como no tratamento isonômico e respeitoso para com as partes processuais. 

Vivemos em uma cultura, especialmente a judiciária, onde os agentes públicos (magistrados, promotores, desembargadores e até ministros) agem com desrespeito, preponderantemente para com os advogados e seus constituintes. 

A nova Lei de Abuso de Autoridade – 13.869/19, diz que é abuso de autoridade decretar a privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais (art. 9º, caput). Em uma audiência de instrução e julgamento, na Comarca de Contagem/MG, ao manifestar sobre o requerimento de prisão preventiva feito pelo Ministério Público e ratificado pelo assistente de acusação, fiz menção de que fosse observada a legislação processual penal, assim como a lei de abuso de autoridade. 

Em imediata intervenção, o (a) Magistrado (a) disse: “você não tem vergonha não, o Senhor quer que eu imprima a lei de abuso de autoridade pro Senhor apontar qual foi a conduta”. Não há necessidade de muito esforço interpretativo para perceber a quebra do tratamento isonômico, assim como a quebra do tratamento respeitoso, o qual é fundamental para o exercício da função advocatícia (art. 6º, caput da Lei 8.906/94). 

Não há discordância que o advogado é indispensável à administração da justiça (art. 33 da Constituição Federal), entretanto, alguns magistrados, acostumados com práticas abusivas, como restringir a liberdade do jurisdicionado (abuso no uso da prisão preventiva – exemplo do presente caso), assim como intervenção direta em outros direitos e garantias ao imputado, não tiveram uma recepção positiva da Lei de Abuso de Autoridade – 13.869/19, vez que impôs limite-sanção ao atos abusivos rotineiramente praticados. 

O advogado, no exercício da sua função pública, não é “sem vergonha” por fazer menção à lei, seja ela qual for, até porque, todas as manifestações do causídico devem ser fundamentadas (art. 261, parágrafo único do Código de Processo Penal). 

A igualdade de tratamento entre as partes processuais pode promover um desequilíbrio na relação processual, tendo como consectário a própria negação da função jurisdicional (TOURINHO FILHO, p. 61).

A legitimidade da atuação do órgão jurisdicional não decorre de relações políticas, mas sim da estrita observância da constituição e das leis, logo, é dever do órgão jurisdicional a proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um (incluindo pleno respeito no tratamento com as partes processuais), ainda que precise decidir de forma contrária ao desejo da maioria (LOPES JÚNIOR, p. 165)

O desrespeito à atuação do advogado no exercício da sua função essencial à administração da justiça constitui não somete abuso de autoridade, mas uma completa deslegitimação do próprio órgão jurisdicional, afinal, aquele que vai aplicar a lei ao caso concreto, deve ser o primeiro a respeitá-la. Portanto, ante os recorrentes abusos praticados por membros do Ministério Público, assim como por magistrados, a Lei de Abuso de Autoridade deve ser utilizada com frequência com a finalidade de reduzir essas perversas práticas, bem como conscientizar os abusadores.


REFERÊNCIAS

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2010. 

FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 17ª ed. Saraiva. 

JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 10ª ed. Saraiva.


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