Dress code do processo penal: do figurino aos direitos humanos

Dress code do processo penal: do figurino aos direitos humanos

Com que roupa, eu vou, ao samba que você me convidou?

Mas o que a pergunta, feita pelo “Poeta da Vila”, ainda em 1930, tem a ver com o processo penal? Contextualmente, pouco. Afinal, o processo penal brasileiro não é samba (ou, pelo menos, não deveria ser).

Todavia, lá como cá, inúmeros aportes semióticos integram o contexto particular de cada discurso, sendo certo que, tanto no samba quanto no processo, o poder simbólico figura como um elemento comunicativo determinante.

Como fenômeno humano que é, o processo penal está perene e inexoravelmente permeado pelas fragilidades sensoriais, morais, ideológicas e cognitivas dos personagens que nele se engajam.

No “caldo discursivo” que se forma no âmbito do processo, inúmeras mensagens são trocadas e, por óbvio, não apenas aquelas veiculadas em plataformas físicas, como petições e memoriais; ou via oralidade (como, aliás, comandam os arts. 400 e seguintes do CPP, especialmente o art. 403).

O que não se diz também comunica algo, sempre (MORAIS DA ROSA, 2016. pp. 122-123):

O efeito da observação altera a atribuição de qualidades da testemunha, do acusado, sendo poderoso mecanismo cognitivo, queiramos ou não. Os cuidados com a roupa, o cabelo, o modo como se porta na audiência, então, passam a compor o jogo processual. […] basta um único sinal, certa arrogância, risinho de canto de boca, roupa fora do contexto, postura, contato visual, para que tenhamos um julgamento sobre o sujeito, naquilo que a psicologia cognitiva denomina de heurística e vieses, com os quais, diminuímos a carga de trabalho mental e manejamos melhor o dia a dia.

Os corpos, as expressões faciais, a linguagem corporal e, inclusive, as vestes, comunicam mensagens que podem ser relevantes (se não determinantes) aos resultados de um ato processual, especialmente daquele em que, pretensamente, se congregam todos os personagens atuantes no fenômeno do processo, isto é, acusação, defesa, julgador, testemunhas, (eventualmente) a vítima e, enfim, o protagonista: o acusado.

Pois então.

Com que roupa vai o acusado à audiência para a qual fora intimado?!

Bom, estando solto, a escolha fica por conta do gosto ou do bom senso do próprio acusado, preferencialmente atendendo aos conselhos do mais indicado personal stylist para a ocasião: o seu defensor.

E se a defesa técnica julga irrelevante a apresentação “estética” do acusado em audiência, bem… Parafraseando MORAIS DA ROSA, provavelmente se trata de um jurista “baunilha”. Um amador, e não de um player no jogo que é o processo.

Por outro lado, estando preso o acusado, drasticamente menores serão as opções, uma vez que, na imensa maioria dos casos, estará trajando os já largamente conhecidos uniformes conferidos pela Administração Prisional (nas Minas Gerais, o famigerado conjunto vermelho da Subsecretaria de Administração Prisional, com a nada discreta inscrição da correspectiva sigla: “SUAPI”).

Ao largo de discutir as gravosas incidências das gestões prisionais sobre a dignidade da pessoa presa, que sob as bandeiras de “ordem e disciplina” promovem verdadeira “coisificação” do sujeito inserido no sistema carcerário, é impossível negar a determinante contribuição da vestimenta do preso, enquanto elemento estético-simbólico, para a construção arquetípica da imagem do criminoso, que na hipótese ora abordada, extrapola o ambiente intramuros para espraiar seus deletérios efeitos também do lado de fora.

A mensagem, embora silenciosa e exclusivamente imagética, é clara e evidente:

Eis aí o criminoso! Eis aí o culpado!

Por mais inconfesso, este é o sentimento que a todos toma ao ver o indivíduo “desembarcando” de uma viatura, ou caminhando escoltado pelos corredores do foro, ostentando o “uniforme vermelho”. Por que tal sentimento não tomaria, ainda que inconscientemente, o julgador? Estaria infenso fosse ele cego, apenas. Sendo humano e oftalmicamente hígido, não estará!

As instâncias psicológicas do indivíduo tendem a operar em um regime que gere menos desconforto, isto é, em confirmação das suas próprias hipóteses, conscientes ou (e aí é que mora o perigo) inconscientes. A ilustração freudiana dirá da tensão entre o “princípio do prazer” e o “princípio da realidade”.

Leon Festinger chamará de “dissonância cognitiva”, isto é, um conflito travado quando o indivíduo vê confrontados os seus valores, crenças e convicções com o ambiente em que se encontra, e que influencia drasticamente o seu processo decisório.

A dissonância gera “dor” e, para afastá-la, o indivíduo tende à alteração do seu estado mental em busca da consonância, do reequilíbrio, ainda que por operações calcadas em presunções, estereótipos, modelos mentais “confortáveis” que, enfim, se ajustem e se compatibilizem, mesmo que para tanto seja necessário, consciente ou inconscientemente, promover a confirmação de hipóteses preconcebidas (“tendência à confirmação”), desconsiderar elementos de cognição que contribuem para a dissonância (“negação de evidências”), ou até mesmo criar “falsas memórias” (ou corruptelas e distorções).

No processo penal, este estado psíquico conflitivo pode operar severos impactos em relação à atividade do julgador, conforme já alertara LOPES JR., comentando estudos de Bernd Schünemann sobre a Teoria da Dissonância Cognitiva no processo penal:

O autor traz a teoria da dissonância cognitiva para o campo do processo penal, aplicando-a diretamente sobre o juiz e sua atuação até a formação da decisão, na medida em que precisa lidar com duas ‘opiniões’ antagônicas, incompatíveis (teses de acusação e defesa), bem como com a ‘sua opinião’ sobre o caso penal, que sempre encontrará antagonismo frente a uma das outras duas (acusação ou defesa).

Mais do que isso, considerando que o juiz constrói uma imagem mental dos fatos a partir dos autos do inquérito e da denúncia, para recebê-la, é inafastável o pré-julgamento (agravado quando ele decide anteriormente sobre prisão preventiva, medidas cautelares, etc).

É de se supor – afirma Schünemann – que ‘tendencialmente o juiz a ela se apegará (a imagem já construída) de modo que ele tentará confirmá-la na audiência (instrução), isto é, tendencialmente deverá superestimar as informações consoantes e menosprezar as informações dissonantes”.

Nesta linha de ideias, a roupa do preso pode, sim, influenciar na apreensão do caso penal pelo julgador, para além dos elementos de prova colhidos no âmbito do processo, operando como um “reforço” ou como um “alívio” à dissonância gerada pela “contaminação cognitiva” (LOPES JR. E MORAIS DA ROSA) decorrente do prévio contato, dele, juiz, com eventuais elementos de informação encartados na investigação preliminar; com a denúncia; ou mesmo pela decretação de medidas cautelares patrimoniais ou pessoais, especialmente a prisão.

Desprezar este “detalhe” de figurino é fechar os olhos para o engrandecimento do abismo nesse “espaço cênico” de um processo inquisitorial assentado por sobre uma “estética de imparcialidade”, uma “aparência de estranhamento e afastamento de quem julga e quem acusa” (LOPES JR.).

É desprezar o fato de que “nem todas as informações se dão pelo nível da consciência”, decorrência do que MORAIS DA ROSA (2016. p.p. 116-124) chamaria de efeito halo.

Aqui o destaque: “a roupa DO preso” e não, como costumeiramente se percebe “a roupa DE preso”. A pessoa não É presa; ela ESTÁ, presa. A prisão não é um determinante ôntico do sujeito, senão uma contingência que não lhe demove (ou não deveria) da condição (esta, sim, essencial) de ser humano digno.

E é assim que, por imperiosa observância à asseguração da dignidade da pessoa presa (art. 1º, inc. III; art. 5º, inc. XLIV, da CF), bem como pelo princípio do estado de inocência (art. 5º, inc. LVII, CF), ao preso deve ser assegurado o direito de trajar-se como roupas “civis” para a participação da audiência, desvencilhando-o, ainda que minimamente, do pré-formatado arquétipo do criminoso, do condenado, do pária.

Aliás, a Resolução n.º 663 C (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela Resolução 2076 (LXII), de 13 de maio de 1977, da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece as “Regras mínimas para o Tratamento dos Reclusos”, adotadas no Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes (1955), entre as quais, o item 17.3, segundo o qual

Em circunstâncias excepcionais, sempre que um recluso obtenha licença para sair do estabelecimento, deve ser autorizado a vestir as suas próprias roupas ou roupas que não chamem a atenção.

Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“Pacto de São José da Costa Rica”), promulgado pelo Decreto n.º 678/92, em seu art. 11, assegura que

1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

[…]

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

A própria Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84), em seu art. 41, inc. VIII, assegura à pessoa presa o direito de “proteção contra qualquer forma de sensacionalismo”, assim como a Constituição da República de 1988 veda “tratamento desumano ou degradante” e assegura aos presos “respeito à integridade física e moral” (art. 5º, incs. III e XLIX).

Com efeito, a execução da pena corporal deve relativizar exclusivamente os direitos imediata e inexoravelmente afetados pela imposição condenatória, não podendo redundar na absoluta “pasteurização” do indivíduo em uma massa disforme de condenados sem nome, sem identidade, sem dignidade. Com maior razão se diga, ainda, quanto à prisão de natureza cautelar, provisória por excelência e ainda não apoiada sobre um decreto condenatório transitado em julgado.

Por óbvio, a vestimenta característica do sistema prisional envolve a pessoa presa em um intransponível estereótipo cuja força, direta ou sub-reptícia, opera efeitos nefastos à paridade de armas e ao devido processo penal. Se esta “força estética” é capaz de causar dissonância cognitiva (e, portanto, potencialmente macular as operações cognitivas a partir de então) na vítima ou em testemunhas, porque não causaria idêntico efeito no julgador. Ou juiz não é, também, gente?!

Persistindo, a despeito da prisão, as garantias constitucionais do devido processo penal e a dignidade da pessoa presa, deve-se a ela facultar a utilização dos seus próprios trajes, como medida de resgate e asseguração da sua subjetividade singular, refletida, inclusive, no ambiente extramuros, bem como para mitigar o oceano que distancia a atual prática forense do sistema processual penal acusatório constitucionalmente desenhado, especialmente com a imparcialidade substancial do julgador.

Seja na órbita da inalienável dignidade humana, seja na contribuição pelo arejamento democrático de um sistema processual penal ainda rançosamente inquisitório e violento, os trajes do preso em audiência transcendem o mero “detalhe de estilo” e devem abandonar o dress code de um processo penal inquisitorial old fashioned, démodé, para investir-se, enfim, na “tendência”, não apenas estética (espera-se), de um processo efetivamente radicado na Constituição.


REFERÊNCIAS

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3.ed. rev. atual. e amp. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 122-123.


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