Drones: usos e abusos
Por Bernardo de Azevedo e Souza
Semanalmente, mais de cem membros da Segurança Nacional norte-americana reúnem-se por teleconferência segura e discorrem, durante horas, sobre biografias de suspeitos terroristas. Ao término de cada reunião é elaborada uma lista com nomes diversos, com expressa recomendação à Casa Branca para que determine a eliminação de todos eles. Em posse do rol de suspeitos, o presidente aprova oralmente cada um dos nomes, homologando a kill list. Cabe agora aos drones se encarregar do resto.
Os critérios empregados para elaboração destas listas permanecem até hoje desconhecidos. A administração dos Estados Unidos recusa-se a oferecer quaisquer informações precisas sobre a questão, cingindo-se a dizer que tanto as práticas quanto os procedimentos utilizados para a identificação dos alvos são extremamente “sólidos” e “precisos”. E assim, sob a justificativa de que representam uma ameaça à segurança nacional (threat to national security), inúmeras pessoas são diariamente aniquiladas no Oriente Médio, sem o devido processo legal.
Se estas eliminações, da forma como são efetivadas, podem parecer um tanto quanto arbitrárias, o que dizer então dos chamados ataques de assinatura (signature strikes), cuja concretização se fundamenta em traços, índices ou características definidoras? Tal prática, adotada pelo Governo dos Estados Unidos diuturnamente, se dirige àqueles indivíduos de identidade desconhecida cujo comportamento levaria a supor a adesão, participação ou colaboração com determinada organização terrorista.
Com um simples comando a partir de uma base em Nevada, indivíduos do outro lado do mundo são atacados tendo como base o modo como estão agindo, vistos do céu. Uma reunião entre um grupo de pessoas pode perfeitamente, aos olhos de um operador de drone norte-americano, ser considerada uma atividade criminosa ou mesmo estar associado a alguma “atividade terrorista”. Contudo, como destaca o estudo intitulado The Civilian Impact of Drones (ver aqui), promovido pela Columbia Law School, a “intituição” ou o “tato” de um operador, por si só, não pode ser suficiente para justificar um ataque a quem quer que seja. Compreender o contexto local e as práticas culturais da região vigiada pode, na maioria das vezes, ser uma alternativa válida para evitar que comportamentos rotineiros sejam equivocadamente interpretados como se suspeitos fossem, vindo a ocasionar, consequentemente, a morte de civis.
O mencionado estudo assume especial relevância, notadamente em decorrência de dois lastimáveis episódios que ocorreram no Afeganistão e no Paquistão. Como assinala CHAMAYOU[1], em setembro de 2010, as autoridades norte-americanas anunciaram a eliminação de um importante chefe taliban, no Afeganistão. Contudo, os mísseis acabaram atingindo Zabet Amanullah, um civil em campanha eleitoral e outras nove pessoas. O ataque teve por justificativa o relatório de um grupo de analistas, que, a partir de uma aferição de registros de chamadas telefônicas, concluiu que o alvo necessariamente estava na localidade onde os mísseis foram direcionados.
O segundo caso ocorreu em março de 2011. Na oportunidade, um ataque norte-americano aniquilou um grupo de homens reunidos em Datta Khel, no Paquistão, tendo como base o argumento de que o comportamento adotado por eles correspondia ao modo de ação de militantes ligados à Al-Qaeda. Sob a ótica do Governo dos Estados Unidos, a forma como aqueles homens estavam agrupados conduzia à inevitável conclusão de que celebravam um “encontro terrorista”. Mas a aglomeração, em verdade, se tratava de uma assembleia tradicional denominada loya jirga (ver aqui), com o intuito de resolver um conflito na comunidade local. Cerca de trinta pessoas morreram no ataque porque, aos olhos do operador do drone, tudo indicava uma reunião com o intuito de praticar “atos terroristas”.
Maulvi Abdullah Haizaji, cidadão de uma vila afegã bombardeada por mísseis de drones em 2001, ao comentar sobre os ataques vivenciados assim referiu: “Rogamos a Alá que nos dê soldados norte-americanos para matar. Essas bombas que descem do céu não temos como combater” (ver aqui). Para Haizaji e tantos outros, os ataques de drones são considerados atos covardes, visto que o piloto elimina pessoas em terra a partir do espaço seguro de um abrigo climatizado em Nevada, sem correr o risco, por menor que seja, de ser morto por aqueles que está atacando. Para muitos norte-americanos, no entanto, o desabafo do afegão – usado até mesmo por oficiais norte-americanos em apresentações em PowerPoint para motivar os operadores -, comprova a implacável eficácia da arma.
Como forma de diminuir as baixas decorrentes da frequente prática do signature attacks nos Estados Unidos, um artista chamado Adam Harvey idealizou recentemente um traje anti-drone (ver aqui). Fabricada com um tecido metalizado especial, a roupa permite esfriar a silhueta do corpo humano, tornando o usuário praticamente invisível à noite para as câmeras térmicas dos drones. A invenção, porém, não agradou à Agência de Segurança Nacional norte-americana e ao escritório do Diretor de Inteligência Nacional, que se recusaram a tecer maiores comentários a respeito.
A era dos drones traz consigo tempos difíceis. Se antigamente um dos principais objetivos das disputas consistia na conquista de territórios, a guerra tecnológica de hoje se contenta com a eliminação pura e simples de indivíduos. À semelhança da hidra, a besta mitológica que regenera suas cabeças quando são decepadas, a kill list norte-americana de “suspeitos” nunca diminui: os nomes e os rostos dos alvos são substituídos constantemente por outros. Trata-se de uma erradicação interminável.
O modo como as eliminações vêm sendo conduzidas, no entanto, sobretudo no que diz respeito aos “ataques de assinatura”, acarreta a morte de inúmeros civis inocentes, que não possuem quaisquer relações ou conexões com “organizações terroristas”. Enquanto os Estados Unidos adotar este modus operandi, ainda nos depararemos com relatos como o do jovem paquistanês Sadaullah Wazir (ver aqui), vítima, com sua família, de um ataque de drones:
– Por que você acha que eles os atacaram?
– Eles disseram que havia terroristas, mas era a minha casa. Não há terroristas. Só pessoas comuns com barba…
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[1] CHAMAYOU, Grégoire. A teoria do drone. Trad. de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 61.