O ‘duelo’ Lula x Moro e a jurisdicionalidade
O duelo Lula x Moro e a jurisdicionalidade
Ganhou muito destaque, nos últimos dias, as capas de revistas de grande circulação que estampam a reprodução de um duelo entre o ex-presidente Lula e o Juiz Sérgio Moro, por conta do depoimento a ser prestado em audiência designada para esta semana.
As ilustrações sugerem um enfrentamento entre o Acusado e o Julgador, num deles os dois vestem máscaras de guerreiros, noutro estão em cima de um ringue com luvas de boxe, frases como o “encontro cara a cara” e o “ajuste de contas” dão o ar que faltava para transmitir a imagem de um duelo a ser travado entre ambos.
Não adentrarei na seara deste processo, em que haverá a referida audiência, por desconhecer o seu estágio atual, bem como as provas já produzidas.
O que se quer avaliar neste pequeno espaço é o custo para a jurisdicionalidade e, consequentemente, para todo o processo penal e, por decorrência, para a própria democracia constitucional de se criar um imaginário social que coloca um juiz como desafiante de um Acusado em um ringue, como se houvesse uma “luta” no processo penal e como se este duelo fosse contra o juiz.
Se o processo penal é um espaço de enfrentamento, de duelo, de guerra ou de jogo, como tantos autores já sustentaram, é certo que este embate deve ser dar entre as partes, em plena observância das regras do jogo e em igualdade de condições.
Quando num dos polos se encontra o juiz, é que algo vai muito mal. Traçando um paralelo com o futebol, no jogo em que o juiz chamou a atenção, certamente, temos um erro como definidor dos rumos da partida.
Sempre que um time quer enfatizar a injustiça da partida refere que teve de enfrentar, também, o juiz. Ora, na mais banal das atividades desportivas sabemos ser impossível jogar contra o juiz.
Pois bem, imaginem isto no processo penal? Se a lava-jato será enaltecida e se a audiência é para colher o depoimento do ex-presidente Lula, alvo de uma enormidade de acusações, que coloquemos as partes na posição de antagonismo, mas não o juiz. Pois contra o juiz, não tem jogo.
Inúmeras questões podem ser levantadas contra Lula ou contra Moro, bem como em favor de ambos, mas não me ocuparei destas. Não estou afirmando que o juiz Sérgio Moro é quem está se colocando nesta posição, tampouco posso dizer que concordou ou gostou das ilustrações, mas precisamos refletir sobre isto, pelas expectativas criadas em cima da atuação jurisdicional.
A que expectativas um juiz criminal deve corresponder? A “voz das ruas” é elemento a autorizar uma postura de enfrentamento por parte de um Magistrado? Todas estas questões são muito complexas e reproduzem muitos efeitos nos processos penais.
As expectativas criadas em torno do Magistrado podem leva-lo a atos arbitrários e servir como um autorizador e legitimador de práticas abusivas.
Talvez, no caso de Moro, grande parte das expectativas tenham sido criadas independentes ou, até mesmo, contra a sua vontade, mas é fato indiscutível que influenciam no seu agir.
Não há que se sustentar o argumento de que este é um caso atípico, o juiz precisa agir diferente em relação a este réu e que as regras processuais devem ceder em nome da defesa da lava-jato (o ente lava-jato como algo sagrado).
Isto por que não se pode, em uma Estado Constitucional de Direito, se permitir a criação de juízes de exceção, de tribunais e regras criados à la carte para a solução de um determinado caso. As regras processuais não podem variar de acordo com a gravidade do crime, tampouco pela pessoa do Réu. Admitir isto é chancelar o direito penal (e o processo penal) do inimigo, o que não condiz com as bases constitucionais que (deveriam ser) são os alicerces de nossa democracia.
A jurisdicionalidade é algo muito caro em um país democrático, justamente, pelo fato de que não há regras, não há direito, sem juízes que as assegurem.
Diante da opção democrática de nossa Constituição, o processo visto como um instrumento da jurisdição representa uma primeira garantia, em razão de que outras hão de operar, em especial a imparcialidade e a independência do juiz (PRADO, p. 45)
O juiz quando ocupa uma posição de combate para com a outra parte sai de sua função jurisdicional, de modo que não há como imaginar a possibilidade uma atuação imparcial, justamente, pelo fato de ter tomado o lugar de parte.
Dessa forma, a jurisdicionalidade está para além da presença de um julgador e do respeito aos preceitos legais, pois como define LOPES JR: “não basta ter um juiz, devemos atentar a serviço do que e de quem ele está.” (LOPES JR., 2011, p. 334).
Por isto, esta garantia de jurisdição abrange uma série de garantias, pois seria mais do que ter um juiz, seria ter um juiz natural, imparcial e comprometido em dar eficácia aos dispositivos Constitucionais (LOPES JR., 2008, p. 109).
Portanto, a jurisdição é algo muito sério para que possamos permitir tamanha flexibilização e banalização dos direitos a ela inerentes.
Não se trata de defender “A” ou “B”, mas sim da defesa das regras do jogo processual. Não caímos no maniqueísmo que reduz a complexidade dos problemas postos em jogo, não se trata da defesa deste Acusado, tampouco de se buscar a impunidade, mas, unicamente de se entender que a defesa do Direito passa pela observância e pelo respeito aos princípios e regras que compõe um ordenamento.
Não podemos admitir como normal, válido e, muito menos, justo o imaginário de um juiz como combatente do Acusado, independente de quem seja o Acusado ou de quem seja o Juiz, pois a lei deve ser a mesma para todos e, certamente, nenhum de nós acha justo ter de jogar contra o juiz.
REFERÊNCIAS
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A conformidade constitucional das leis penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, volume II. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Volume 1. 3. Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.