E até feitiço tive que enfrentar naquele júri!
Por Jean de Menezes Severo
Fala moçada! Tudo favorável e tranquilo? Maravilha. Estou me preparando para uma sequência de júris complicadíssimos que vem por aí. Serão três em pouco mais de um mês, fora as audiências e aulas para preparar, mas sem esquecer a entrega da dissertação do mestrado que deve ocorrer nos dois próximos meses. Meu Deus, correria total! Porém, assim que é bom, porque escritório de advocacia parado é capaz de atrair mosquito da dengue, zika, e tudo mais. Pois bem, chega de piadinhas sem graça e vamos ao que interessa: coluna no ar!
Hoje, vou contar uma história vivida por mim há cerca de uns cinco anos. Irei falar de uma situação inusitada que aconteceu comigo quando de um julgamento pelo tribunal do júri. O que eu não sabia é que, além de enfrentar um capacitado promotor de justiça, teria que me preparar para um feitiço feito contra este rábula diplomado, a fim de que ele, neste caso, eu, não pudesse sequer falar no dia do plenário. Mas que loucura que fizeram!
Defendia uma família e estes são os piores júris que temos para fazer. Senão bastasse ter que defender mais de um réu, todos eram familiares (pai, filha e filho) e a acusação era de homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio que dificultou a defesa da vítima e emboscada). Algo bem tenso. Eu tinha total ciência que deveria fazer meu melhor naquele julgamento e mesmo assim talvez não fosse obter êxito na demanda.
Faltando menos de 48 horas para o julgamento, recebo uma ligação desesperada da mulher e mãe dos réus; a única da família que estava solta e que não havia sido denunciada. A senhora estava transtornada ao telefone e dizia:
“Doutor, preciso me encontrar com o senhor urgente! Agora!”
Expliquei para ela que tinha outros compromissos e que poderíamos conversar no outro dia, mas não ela insistiu de uma forma que até me assustou. Marquei então um horário bem no final da tarde. Eu estava simplesmente ”moído”. Havia feito três audiências e ter que voltar ao escritório para atender no final da tarde, início de noite, era quase que um castigo. Aguardei a senhora, que foi pontual, e que, ao me olhar, já disse de cara:
“Doutor, temos um problema! O senhor tem que se cuidar para o júri.”
Perguntei:
“Como assim me cuidar? Vão tentar me matar?”
Ela disse:
“Não, vão tentar lhe calar. A família da vítima contratou a mãe de santo mais cara do estado para fazer com que o senhor não consiga falar no júri. Doutor, pagaram R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para a mãe de santo lhe calar no júri.”
Puxa vida!!! Estou bem cotado no mercado. Cinquenta barões para me calar… Comecei a rir, no entanto, a senhora prontamente me alertou:
“Doutor, não brinca com isso. Ela é poderosa. Todos estão falando no bairro que o senhor não vai fazer este júri. E agora doutor? Minha família vai ser condenada. E começou a chorar copiosamente.”
Ofereci um copo d’água para a senhora e pedi que se acalmasse. Falei que estava preparado para o júri; que a minha religião era fazer o bem; que não acreditava que mal algum fosse me acontecer naquele júri; que tinha convicção que iríamos fazer um júri bem feito e que, ao final, teríamos um excelente resultado. Sempre fui adepto do pensamento positivo, mas sem criar falsas ilusões.
Aquela história, ainda que fantástica para mim, não era estranha ao bairro. Trata-se de uma comunidade humilde, religiosa, com adeptos de várias crenças (cristãos, evangélicos, espíritas, ateus, umbandistas e afins). Havia vários terreiros de candomblé na região e possuía clientes de todas as crenças, porém, o valor me deixou um pouco surpreso sim.
Muitas vezes ouvi histórias de famílias, inclusive de clientes meus, que queriam ajudar no processo colocando um feitiço no promotor e no juiz envolvidos, levando o nome deles para seus guias espirituais. Noutras vezes, havia uma guerra de macumbas, isto é, a família da vítima lançando feitiços contra os acusados e vice-versa. Podia não acreditar nessas histórias, mas, quando se trata de questões de fé, todo cuidado é pouco para não magoar ninguém.
Com ou sem feitiço, o júri estava marcado. Havia um processo. Provas. Testemunhas. Vítimas. Acusados. Promotor. Juiz. Advogado. E era nisso que eu deveria me preocupar a partir daquele momento.
Na realidade, a prova que o Ministério Público possuía era fraca, mas sua acusação estava fortemente vinculada, também, ao tráfico de entorpecentes. A comum soma morte + drogas. Todavia, não existia uma apreensão de tóxicos e/ou armas nos autos. Tudo não passava de mais um homicídio por brigas banais, sendo que meus clientes não estavam nem de perto envolvidos naquela situação. Mas todos sabem como funciona o jogo: um ouviu falar uma coisa, outro disse quer eram inimigos e assim o delegado concluiu o inquérito, apontou a autoria e remeteu ao Judiciário que comprou a ideia, vindo a pronunciar os réus por homicídio triplamente qualificado. Uma vergonha.
Após a conversa com a senhora naquela noite, fui para casa pensando naquilo. Puxa, não cobrei nem dez por cento do que a mãe de santo cobrou. Acho que estou na profissão errada. Vejam só: cinquenta mil reais para que eu não fizesse o júri. Meu “passe” estava bem valorizado na cidade e segui para minha casa, afinal de contas, um grande júri se aproximava e eu já me encontrava em “estado de júri”.
Chegou o dia do plenário. Auditório completamente tomado pelas duas famílias. A mãe e esposa dos meus clientes estava transtornada:
“Doutor, o senhor se preparou bem? Procurou uma ajuda espiritual?”
Eu disse que sim e encerrei o assunto. Fui para o plenário com “sangue nos olhos” como é meu estilo de trabalho.
O promotor realizou seu trabalho nas duas horas e meia que tinha para acusar de forma magistral e pediu a condenação dos três acusados. Um intervalo de quinze minutos foi feito para que então a defesa iniciasse seus trabalhos e chegou o momento tão esperado: A defesa tem a palavra! Esperei alguns segundos e nisso me veio na cabeça o que a senhora havia me dito: que eu não conseguiria falar.
Sorri, pedi proteção aos espíritos de luz e naquele dia fiz o melhor júri da minha vida. Desgastei-me muito. Saí do plenário na cadeira de rodas e absolvi os três num 5×2 fantástico. Bah, que alegria! Que júri! Ver os três réus sendo soltos no final foi extraordinário. A família da vítima não acreditava e decidiu se retirar do plenário sem causar nenhum transtorno. Eu fui para a enfermaria e tomei soro. Fiquei derrubado fisicamente daquele plenário, mas meu coração estava em festa. Mais uma absolvição e desta vez até com feitiço feito!
Mas, meus leitores, não existe feitiço que derrube um profissional bem preparado e que ama a sua profissão. O negócio é não se “encucar” e estudar o processo a fundo, conhecendo os autos de “capa à capa”, porque, dessa maneira, nada pode te impedir de realizar um brilhante trabalho.
Se até mesmo Deus é por nós, quem será contra nós?