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É constitucional o art. 492, I, e, da Lei Anticrime?

É constitucional o art. 492, I, e, da Lei Anticrime?

No Brasil temos em torno de 748.009 mil pessoas segregadas. Dessas, cerca de 362.547 pessoas cumprem pena no regime fechado e 133.408 cumprem sua reprimenda no regime semiaberto.

Conforme dados atualizados do período de julho à dezembro de 2019 (DEPEN), 171.715 pessoas que respondem perante o plenário do Tribunal do Júri. O percentual para os homens são em torno de 17,5% e para as mulheres em torno de 13,44%, perfazendo um total em torno de 171.715 pessoas que respondem atualmente por crimes contra a pessoa.

Analisando os dados, projeta-se que a nova Lei anticrime atingirá todo o sistema penitenciário nacional, tendo em vista que poderá o magistrado/a determinar a execução provisória da pena, independentemente do outros recursos que por ventura ainda estejam pendentes, caso o indivíduo seja condenado a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão.

Confira a redação do art. 492 do Código de Processo Penal que diz:

Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:

I – no caso de condenação:

a) fixará a pena-base;

b) considerará as circunstâncias agravantes ou atenuantes alegadas nos debates;

c) imporá os aumentos ou diminuições da pena, em atenção às causas admitidas pelo júri;

d) observará as demais disposições do art. 387 deste Código;

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.

Entendo que essa mudança brusca na legislação atinge diretamente um dos princípios basilares do direito, que é a presunção de inocência. Além de ser notório que essa população carcerária não é multicultural e seus direitos são violados sistematicamente, a prisão atualmente, que deveria ser um espaço de correção, mais deforma o ser humano segregado do que o corrige.

Uma pergunta importante que devemos fazer é: em algum momento a prisão corrigiu? Os resíduos da tortura como pena seguem, não obstante a privação da liberdade seja a base do punitivismo (ROSA; AMARAL, 2017, pg. 15).

Assim, é fundamental que seja muito bem estruturada a real intenção da nova Lei anticrime e seja definido quem deseja atingir, tendo em vista que a maior parte da população prisional compreende pessoas com baixo poder aquisitivo. E, em sua grande maioria, a população prisional é composta por pessoas negras e jovens com baixa escolaridade.

Por todas essas razões é que deve prevalecer o princípio constitucional da presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, e não simplesmente uma execução provisória da pena em benefício da nova Lei anticrime. A pesquisa sobre o tema se justifica diante da premente necessidade de se estabelecer os contornos concretos da colaboração premiada no âmbito do direito e processo penal.

O próprio STF já declarou ser inconstitucional a prisão após decisão de segundo grau. Sendo assim, é muito mais inconstitucional a segregação cautelar perante o plenário do Tribunal do Júri, por ser uma decisão de primeiro grau.

Nada justifica que, em caso de condenação igual ou superior a 15 anos, o indivíduo seja imediatamente segregado, tendo em vista que ainda pendem outros recursos que talvez poderão levar a uma absolvição.

Ao ler o livro da escritora Juliana BORGES (2019), fica claro que a população carcerária do Brasil não para de crescer. E podemos verificar o mesmo com os dados do INFOPEN.

Os dados do INFOPEN MULHERES de 2018 nos mostram que a população carcerária feminina do Brasil está aumentando catastroficamente, e o Brasil está na quarta posição mundial, atrás dos Estados Unidos, da China e da Rússia em relação ao tamanho absoluto da população encarcerada feminina.

Em dados gerais, são mais 726 mil presas no país, o que nos leva a ter cerca de 352,6 para cada grupo de 100 mil habitantes. A autora nos mostra que 64% da população prisional é negra. As projeções de aprisionamento futuro no Brasil também não são animadoras. Se continuarmos assim, em 2075 uma em cada 10 pessoas estará em privação de liberdade no Brasil.

Dados de 2014 do DEPEN revelaram que 75% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, demonstrando que a maior parte dos presos compreende pessoas de menor poder aquisitivo, os ditos baixa renda. Neste sentido, Sueli Carneiro, em seu livro “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil”, demonstra que a desigualdade em nosso país é gritante no que tange à pobreza e à cor da pele. Políticas públicas para o desenvolvimento e inclusão destas pessoas se revelam urgentes.

O cárcere, que era para deter a violência, está detendo sim a pobreza, as pessoas das comunidades do Brasil. Nós não evoluímos porque pensamos apenas na prisão, pensamos apenas em punir. Temos a cultura da punição e, muitas vezes, se pune errado.

Sendo assim, conforme entendimento da socióloga Juliana Borges, o pacote anticrime é genocida e ampliou o estado penal e, de certo modo, atingirá em sua grande maioria a população pobre e predominantemente negra.

A Lei 13. 964 foi sancionada no dia 25 de dezembro de 2019, determinando a prisão automática do réu quando decorrente de uma pena igual ou superior a 15 anos, tão logo a sentença durante o plenário do tribunal do júri. A pergunta que se busca resposta neste momento é é constitucional a prisão em primeiro grau de jurisdição sem mesmo recorrer para os tribunais superiores.

Percebe-se que, sendo declarado constitucional o novo art. 492 do Código de Processo Penal, estaremos legitimando a cultura da punição no Brasil. Estaremos ignorando o crescimento da população carcerária, que aumentou cinco vezes em vinte anos.

O julgamento e a decisão do júri são soberanas. E a única possibilidade de mudança é o julgamento de um novo Júri. Não há no ordenamento jurídico brasileiro tal modalidade para os Julgamentos do Plenário do Júri.

Em um primeiro momento devemos analisar se é absoluta ou relativa. Entendo que é relativa, tendo em vista ainda existir processos recursais com a possibilidade de modificar a sentença azarada pelo judiciário.

No Habeas Corpus nº. 68658-3 do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ministro Celso de Mello, datado de 06.08.1991, o paciente foi pronunciado pelo art. 121, § 2º, incisos II e IV, do Código Penal, submetido para julgamento perante Plenário do tribunal do Júri e  absolvido pelo conselho de sentença pela tese defensiva da legítima defesa própria.

O órgão ministerial, inconformado, apelou para o TJSP, que deu provimento ao recurso do MP para realizar novo júri. Sendo assim, a defesa requereu a anulação do acórdão do TJSP usando o argumento que a decisão dos jurados não foi manifestamente contrária à prova dos autos, o que autorizaria a anulação do júri e consequentemente novo plenário.

Conforme relator do presente habeas corpus, a soberania dos veredictos é a faculdade dos jurados de julgar, por íntimo convencimento, a existência de determinado crime e responsabilidade do acusado, sem ter de fundamentar a decisão.

O pedido do habeas corpus foi indeferido, sendo entendimento unânime que a soberania dos veredictos tem valor meramente relativo (Primeira Turma do STF, HC 686583).

Por fim, após decisão perante o Plenário do Tribunal do Júri, cabe o recurso de apelação. Poderá acontecer novo júri e até mesmo absolvição. Sendo assim, a decisão de encarceramento antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória é temerária.

A soberania dos veredictos significa dizer da impossibilidade de outro órgão judiciário substituir a decisão do plenário do tribunal do Júri por ele já decidida. Os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva.

Referente ao HC nº. 174759, busca que seja assegurado o paciente o direito de não sofrer execução provisória da condenação penal que lhe foi imposta, tendo em vista que trata-se condenação com possibilidade de outros recursos.

A reforma da Lei anticrime busca um processo penal célere, sendo que, se houver condenação a uma pena igual ou superior a 15 anos, o recurso de apelação será, via de regra, desprovido de efeito suspensivo, implicando que quanto mais gravíssimo a pena imposta, mais rápido se concluirá sua execução (CAMARGO; FELIX, 196).

Por fim, entendo que a execução provisória da pena quando réu for condenado perante o plenário do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos fere o princípio constitucional da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Entendo que, mesmo que seja condenado perante ao plenário do Tribunal do Júri, não deve o réu ser segregado, tendo em vista ainda haver a possibilidades de outros recursos. O réu poderá ser absolvido nas instâncias superiores e, por mais esse motivo, entendo que não deve prosperar o novo artigo da lei anticrime.


REFERÊNCIAS

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019.

ROSA, Alexandre Morais da; AMARAL, Augusto Jobim. Cultura da punição. 3d. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

CAMARGO, Rodrigo de Oliveira e FELIX, Yuri. Pacote anticrime: reformas processuais. Florianópolis: Emais, 2020.


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Leandro Soares

Advogado criminalista

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