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É incabível o acordo de não persecução penal em casos de arquivamento

É incabível o acordo de não persecução penal em casos de arquivamento

O título deste artigo pode parecer óbvio demais, mas muitas vezes o óbvio precisa ser dito e repetido, até que seja absorvido.

Desde janeiro de 2020, com a entrada em vigor da Lei Anticrime, os operadores do Direito que atuam na área criminal tiveram que aprender, se adaptar e aplicar um novo instituto negocial chamado acordo de não persecução penal (ANPP).

De acordo com os requisitos previstos em lei, o ANPP é cabível em mais de 70% dos crimes do nosso ordenamento (LOPES JR., 2020, p. 220), o que está revolucionando a forma de atuação dos profissionais, em especial advogados e defensores públicos, que estavam acostumados a atuar de forma combativa, e não colaborativa.

A prática ultrapassar a teoria é a tônica dos novos instrumentos de Justiça Penal Negociada no Brasil (ROSA, 2018). Foi assim na colaboração premiada e está sendo assim no acordo de não persecução penal. Os institutos são criados, a prática vai estabelecendo seus parâmetros e a doutrina corre atrás para fornecer subsídios teóricos a essas novidades legais.

Há vantagens e desvantagens nesse cenário, porque ao mesmo tempo que existe espaço para a construção de uma boa prática, há também possibilidade de desvirtuamento do instituto por ausência de preparo dos profissionais. E é com isso que tenho me preocupado.

O fato do ANPP ser cabível numa quantidade avassaladora de delitos exigiu que, da noite para o dia, os operadores tivessem que se adaptar com o oferecimento, negociação e execução de um acordo. O instrumento é bastante complexo, a previsão legal é boa, e ele está inserido num contexto negocial cujas raízes existem no ordenamento brasileiro desde 1995, com o advento da Lei n. 9.099/95, que trouxe os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Acontece que, na prática, esses dois institutos foram completamente desvirtuados da sua essência. Não se vê uma negociação pautada na autonomia privada das partes, lealdade, boa-fé objetiva e confiança na transação penal e na suspensão condicional do processo. A realidade que temos hoje é, muita vezes, impositiva. O Ministério Público (MP) oferece um verdadeiro contrato de adesão, em que há pouquíssima margem de negociação e alteração do que foi oferecido.

E muito disso se dá pela ausência de estudo e capacitação dos profissionais sobre os novos temas. Diferente de outras áreas do Direito, na área penal não fomos ensinados e nem treinados a desenvolvermos nossas habilidades de negociação e conciliação, pelo contrário, aprendemos que o processo penal é um cenário de embate, um lado contra o outro.

Porém, agora temos essa possibilidade de nos reinventarmos e seguirmos a tendência de outras áreas do Direito, que há muito adotam, cada vez mais, métodos alternativos de resolução de conflitos, pautados na lógica do consenso, e não da judicialização.

Ocorre que, 7 meses passados desde a sua entrada em vigor, já temos visto uma má prática do ANPP. Imposições irredutíveis por parte do MP, advogados que não tomam a iniciativa de negociar, que enxergam o representante do MP como oponente e não aliado, que permanecem numa posição de inércia esperando o impulsionamento do feito por parte do Judiciário, que aceitam cláusulas abusivas sem titubear.

ANPP é um instrumento complexo e delicado, que envolve uma série de variáveis. A que decidi abordar hoje, e que tenho visto ser deixada muito de lado, é o fato de que o acordo não serve como uma forma mais rápida de punir pessoas a qualquer custo. A própria lei deixa claro que ele só é cabível quando não for caso de arquivamento da investigação preliminar (caput do art. 28-A do CPP).

E o que isso significa? Que é preciso haver uma maturidade suficiente das investigações, que permitam a sua conclusão. A partir do momento em que o Ministério Público analise a investigação para a formação de sua opinio delicti, enquanto titular da ação penal, para que seja possível oferecer o acordo de não persecução penal, não existirão mais diligências a serem requeridas, pois as provas da materialidade do delito e os indícios de autoria que já constam na investigação serão suficientes, ou seja, haverá justa causa para eventual ação penal. É neste cenário que poderá o MP propor o acordo de não persecução penal, em vez de oferecer a denúncia.

Nesse sentido, afirma Cabral que:

o acordo de não persecução não pode se prestar para ser instrumento de obtenção da justa causa para a investigação. Somente cabe o acordo […] quando já existir a justa causa, amparada em uma base factual investigativa, e quando não for o caso de arquivamento da investigação criminal. (2020, p. 107).

Logo, de uma forma bem objetiva, não serve o acordo de não persecução penal como meio de obtenção de provas e nem como auxílio ao MP para se convencer da existência suficiente de elementos a sustentar a justa causa para eventual propositura de ação penal.

Em linhas gerais, portanto, do ponto de vista do investigado/acusado, a fase investigatória toma uma proporção muito maior. A escolha de se fazer um ANPP só fará sentido caso o investigado seja culpado. E compreender essa questão é essencial.

Isso porque, se a pessoa é inocente, não existem elementos para que se exija que ela confesse uma prática criminosa que não cometeu. E para firmar um ANPP, a pessoa precisa confessar – requisito objetivo (caput do art. 28-A do CPP). Se ela é inocente, se a conduta é atípica ou se existe causa de extinção da punibilidade, e a defesa tem como provar, não se deve esperar uma ação penal para apresentar as provad. Na Justiça Penal Negociada, o palco de discussão da culpa se antecipa para o inquérito policial, o que exige da defesa uma atuação pró-ativa, preparada, que antecipe e produza provas benéficas ao seu cliente (MORAIS DA ROSA; BERMUDEZ, 2019).

É muito arriscado apostar todas as fichas de uma provável absolvição numa ação penal, quando se existe a possibilidade de antecipar o melhor cenário para o cliente na fase pré-processual – que é o arquivamento da investigação sem que seja processado. Quem atua na área criminal sabe que o mero fato de figurar como acusado num processo penal já causa danos irreparáveis, por isso a importância de ir em busca de um arquivamento, quando possível.

Sendo assim, num cenário ideal, a possibilidade de realizar um acordo de não persecução penal só fará sentido quando existir justa causa para a ação penal, embasada em elementos concretos e suficientes que comprovem a materialidade e autoria do delito imputado ao investigado. Preenchidos os requisitos legais, o acordo seria a via preferível, mais célere e menos custosa do que a condenação numa ação penal tradicional.

A minha preocupação reside no fato de muitos acordos de não persecução penal estarem sendo firmados, na prática, em casos em que o arquivamento seria plenamente possível. A defesa não pode ter medo de se manifestar de forma ampla, incisiva e reiterada durante a investigação preliminar, valendo-se inclusive de produção probatória, por meio da investigação defensiva. É chegada a hora da defesa assumir o seu protagonismo na garantia do cenário mais vantajoso possível ao seu cliente/assistido.

Portanto, escrevo estas breves palavras para chamar a atenção do leitor do primeiro requisito objetivo do ANPP trazido em lei: só cabe acordo de não persecução penal quando não for caso de arquivamento. A primeira coisa a ser feita ao se assumir um caso na fase de inquérito é verificar se é possível contribuir ativamente para que o Ministério Público opte pelo arquivamento do feito. Só depois da resposta negativa, caso exista justa causa para eventual ação penal, é que se deve pensar em negociar um acordo de não persecução penal. Que não é a nova regra, é apenas uma nova possibilidade de estratégia defensiva a ser escolhida, na qual devemos todos contribuir para a construção de uma boa prática, que começa pela observância dos parâmetros legais.


REFERÊNCIAS

CABRAL, Rodrigo Ferreira Leite. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: Juspodivm, 2020.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

ROSA, Alexandre Morais da; BERMUDEZ, André Luiz. Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico. 2. ed. Florianópolis: EMais, 2019.

ROSA, Luísa Walter da. Colaboração Premiada: a possibilidade de concessão de benefícios extralegais ao colaborador. Florianópolis: EMais, 2018.


Leia também:

STJ: não cabe a concessão de prisão domiciliar (art. 318 do CPP) quando se tratar de condenação definitiva


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Luísa Walter da Rosa

Advogada Criminalista. Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela PUC Minas. Autora do livro: "Colaboração Premiada: a possibilidade de concessão de benefícios extralegais ao colaborador", pela EMais Editora. Colunista semanal da EMais Editora.

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