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É possível cancelar um acordo de delação premiada já homologado?


Por Valber Melo e Filipe Maia


Através do presente artigo busca-se analisar os poderes do magistrado no que tange, especificamente, à possibilidade de desomologação de um acordo que ele mesmo homologara. Para se chegar a essa conclusão, far-se-ão algumas considerações sobre os aspectos gerais da Lei do Crime Organizado, para, somente ao final, se averiguar se o novel diploma conferiu ao juiz tamanha força.

Consigne-se logo de início que não parece possível tal atuação, isto porque, como se exporá doravante, o magistrado deve ter cuidado redobrado quando estiver diante de um pretenso acordo de delação, vez que a ele, por não ser parte, é peremptoriamente vedada qualquer emissão de juízo de valor no momento da homologação do pacto.

Pois bem. Ab initio, cumpre salientar que o acordo de delação é, essencialmente, um negócio jurídico processual. Nesse sentido, inclusive, é o entendimento já esposado pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal.

Com e efeito, da simples leitura do art. 4º, § 6º, da Lei 12.850/13, é possível extrair, das palavras empregadas pelo legislador, que se trata eminentemente de um negócio jurídico processual. Não é sem motivo, portanto, que ao ato formalizado dá-se o nome de “acordo”.

Neste acordo, é bom que se destaque, devem figurar como protagonistas aqueles legitimados para sua celebração, a saber: o delegado de polícia, ministério público e o colaborador – este, obviamente, acompanhado de seu advogado (art. 4º, § 6º, da Lei 12.850/13).

Note-se, assim, que o magistrado, neste ato, deve manter-se alheio a todo e qualquer tipo de negociação, sob pena de nulidade do ato, visto que, por determinação legal, não pode ele participar do pacto, salvo para averiguar suas características objetivas (art. 4º, §6º, da Lei 12.850/13).

Em outras palavras, não pode o julgador, em hipótese alguma, emitir juízo de valor sobre as palavras do delator. Afinal, como bem observa Guilherme de Souza NUCCI (2015, p. 68), cabe ao magistrado tão somente

“analisar a regularidade (se foram preenchidos os requisitos do art. 6º), a legalidade (se a colaboração se deu nos termos do art. 4º) e a voluntariedade (se o delator não foi pressionado de alguma forma a cooperar). Havendo alguma dúvida quanto à liberdade do colaborador, pode o juiz ouvi-lo, sigilosamente, embora na presença de seu defensor (art. 4, § 7º, da Lei 12.850/2013)”.

Percebe-se, pois, que o legislador, ao tratar da matéria, buscou evitar que juiz tivesse acesso, antecipadamente, às palavras do colaborador, o que geraria insofismavelmente um (pré)juízo cognitivo, caso, por exemplo, houvesse uma retratação por parte de um dos negociantes – colaborador ou MP.

Ora, como ficaria a imparcialidade do juiz frente a tantas informações a que teve acesso? Como alerta Aury Lopes Jr., não pode o julgador dar um rewind mental e deletar o que ouviu, viu e leu. Nessa senda, exige-se, até mesmo para que se garanta um processo penal acusatório, o total afastamento do juiz no que se refere à emissão de juízo de valores quanto ao conteúdo do ato. Repita-se, nesta fase,

“o Juiz somente deve analisar o acordo do seu aspecto formal, não podendo intervir nas questões relativas ao seu conteúdo” (MENDRONI, 2014, p. 44).

Destaque-se, por oportuno, o entendimento do Eminente Ministro Dias Toffoli, do STF, que, de modo acertado, quando da prolação de seu voto, no bojo do HC 127.423/PR, consignou que

“o juiz, ao homologar o acordo de colaboração, não emite nenhum juízo de valor a respeito das declarações eventualmente já prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao Ministério Público, tampouco confere o signo da idoneidade a seus depoimentos posteriores”.

Nessa mesma linha de intelecção, nas informações prestadas pelo Ilustre Ministro Teori Zavascki, no bojo do habeas corpus supracitado, restou assentado que

“o âmbito da cognição judicial na decisão que homologa o acordo de colaboração premiada é limitado ao juízo a respeito da higidez jurídica desse ato original. Não cabe ao Judiciário, nesse momento, examinar aspectos relacionados à conveniência ou à oportunidade do acordo celebrado ou as condições nele estabelecidas, muito menos investigar ou atestar a veracidade ou não dos fatos contidos em depoimentos prestados pelo colaborador ou das informações trazidas a respeito de delitos por ele revelados. É evidente, assim, que a homologação judicial do acordo não pressupõe e não contém, nem pode conter, juízo algum sobre a verdade dos fatos confessados ou delatados, ou mesmo sobre o grau de confiabilidade atribuível às declarações do colaborador, declarações essas às quais, isoladamente consideradas, a própria lei atribuiu escassa confiança e limitado valor probatório (“Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”, diz o § 16 do art. 4º da Lei 12.850/2013)” (grifou-se).

Ora, a toda evidencia, salta aos olhos a impossibilidade de o magistrado “desomologar” o acordo outrora por ele mesmo homologado, isto porque a lei não lhe conferiu tal faculdade. Muito pelo contrário, como bem anota Guilherme de Souza NUCCI (2015, p. 68):

“Há dois caminhos: a) homologar o acordo, que produzirá todos os seus jurídicos efeitos, previstos na Lei 12.850/2013; b) indeferir a homologação, porque não atende aos requisitos legais”.

São esses, portanto, os únicos trilhos disponíveis ao julgador. Evidencia-se, destarte, que se ele homologara o acordo foi porque, em sua avaliação no momento do ato, tudo estava correto, como exige a lei; do contrário, decerto, não o faria. Assim, não lhe cabe desomologar aquilo que já havia homologado. Se a posteriori for verificado um vício no pacto, anule-o por completo, desconsiderando-o como se nunca tivesse existido.

A caminho da conclusão, imagine-se, a título de exemplo, por mais absurdo que possa parecer, que o juiz homologue um acordo de colaboração; contudo, após o ato, decida por bem, valorando as palavras do delator – o que a lei veda de forma cristalina –, conceder-lhe a posição de vítima. Veja-se que, para tanto, há necessidade de se adentrar às questões meritórias, o que somente deve acontecer ao longo do iter processual [culminando quando da prolação da decisão], e não na fase embrionária da persecução penal.

Nesse sentido, pergunta-se: é possível, após a instrução, que se entenda ter sido o delator, em verdade, vítima da organização criminosa? Não se nega tal possibilidade. Entretanto, jamais isso pode se dar no âmbito da validação do acordo, vez que aqui, como esposado à exaustão, não pode o magistrado, em hipótese alguma, emitir juízo de valor.

Conclui-se, portanto, que não há no ordenamento jurídico pátrio a figura da “desomologação” do acordo de delação, porquanto a lei não previu tal possibilidade e, ainda que houvesse previsto, tal regramento deveria ser declarado inconstitucional, por clara afronta ao processo acusatório, bem como a inúmeras garantias constitucionalmente asseguradas.


REFERÊNCIAS

NUCCI, Guilherme de Souza. Organização Criminosa. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Comentários à Lei de Combate ao Crime Organizado: Lei nº 12.850/13. São Paulo: Atlas, 2014.


Valber Melo – Advogado; Mestrando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa; Professor licenciado de Direito Processual Penal e Direito Penal da Universidade de Cuiabá; Pós-graduado em Ciências Criminais; Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal; Pós-graduado em Direito Público; Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT.

Filipe Maia – Acadêmico de Direito da Universidade de Cuiabá e Estagiário em Escritório de Advocacia.

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