É possível impetrar habeas corpus para animais?
É possível impetrar habeas corpus para animais?
[…] o sacrifício de animais representa um ciclo in genere já ultrapassado no contexto do atual estágio moral e espiritual da civilização, por isso havendo passar por rígido controle do Judiciário, em qualquer caso afigurando-se tolerável somente em casos excepcionalíssimos, depois de frustrâneas todas as alternativas de caráter terapêutico.
O trecho acima faz parte do voto do Desembargador Relator Souza Meirelles no acórdão expedido pelo Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, que concedeu, em 17 de junho de 2020, o equivalente ao habeas corpus humano ao cavalo Franco do Pec. O animal foi libertado de um isolamento sanitário que já durava quase três anos em São João da Boa Vista, interior do estado.
Tudo começou em 2017, quando o garanhão foi diagnosticado com mormo (zoonose causada por uma bactéria que pode afetar, eventualmente, outros equídeos e seres humanos) após a realização de um exame de rotina para participar de uma exposição.
O cavalo estava condenado à eutanásia por não haver, ainda, vacina contra a doença. Entretanto, devido ao animal não apresentar os sintomas da doença, o proprietário suspeitou de um falso positivo. Teve início uma batalha judicial para comprovar a saúde do animal e evitar seu sacrifício.
Foi realizado, então, outro exame, desta vez em um laboratório na Alemanha. Confirmou-se que o animal não é portador da doença, e o Tribunal de Justiça acolheu o resultado.
Segundo consta no acórdão, o sacrifício de um animal não pode ocorrer sem que tenham sido esgotados todos os recursos que justifiquem a eutanásia (CANAL RURAL, 2020).
Mas o processo ainda não acabou. A Fazenda contesta, pelo fato de o exame não ter sido realizado no Brasil. Além disso, alega que o proprietário do cavalo poderia ter administrado medicamentos – intencionalmente ou não –, o que interferiria na resposta imunológica do animal, explicou o advogado do proprietário do animal (TJ-SP DÁ HABEAS… 2020).
O Desembargador Souza Meirelles, relator da ação, escreveu:
O futuro ato expropriatório não estaria a recair sobre um bem móvel ou objeto inanimado qualquer, como de ordinário, e sim alcançaria um ser vivo, categorizado entre […] os mais ‘inteligentes’, dóceis e cooperativos dentro da comunidade animal, ao qual a Humanidade deve um tributo impagável (TJ-SP DÁ HABEAS…, 2020, p. 8).
Além disso, o Desembargador Relator afirmou que
a moderna formulação dogmática dos Direitos dos Animais, embora em ascendente compasso de evolução e aprimoramento tanto teorético quanto legislativo, já consagra entrementes alguns direitos fundamentais igualmente intocáveis, como o direito à vida, à liberdade monitorada, conferindo-lhes tal dignidade existencial dentro da escala biológica que impede figurem como receptáculos de quaisquer atos de crueldade, ainda que para fins científicos ou sanitários”, e que a abolição do especismo “se insere como uma das mais notáveis conquistas em prol da espiritualização do Planeta (SÃO PAULO, 2020, p. 8-9).
Todavia, o cavalo Franco do Pec não foi o primeiro animal não-humano que teve habeas corpus concedido. Antes dele, chimpanzés e orangotangos, por exemplo, já foram beneficiados por essa medida judicial. No Brasil, a chimpanzé Suíça, que morreu em 2005, foi o primeiro animal reconhecido como sujeito jurídico de uma ação. Entretanto, com a morte de Suíça, o habeas corpus perdeu o seu objeto, a sua razão de ser, cessando-se, por consequência, o interesse de agir.
Em 2014,a Justiça da Argentina declarou que uma orangotango, chamada Sandra, era um “sujeito de direitos não humano”. A exemplo de Suíça, Sandra também vivia em cativeiro. Em novembro de 2019 ela foi transferida para os Estados Unidos e agora vive segura em um santuário para grandes primatas na Flórida.
Também na Argentina, em 2016, a chimpanzé Cecília, vivendo solitária em um zoológico, ganhou o direito de residir em um santuário para grandes primatas localizado no Brasil por meio de um habeas corpus.
Mas sabe-se, caro leitor, que processos judiciais como os acima descritos não têm rápido desfecho. Infelizmente nossa justiça é morosa, além de antropocêntrica. Tanto que Suíça não conseguiu desfrutar daquilo que era pleiteado para ela, a possibilidade de uma vida digna, longe de zoológicos. Morreu antes.
Para o juiz federal Anderson Furlan,
não é necessário que [os animais] tenham direito a voto, casamento ou à propriedade. Basta que tenham direito a ter uma existência digna durante seu breve tempo nesse planeta (BARBOSA, 2017).
Leia também:
Animais não-humanos e vítimas domésticas
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Renan. Animais “quase gente”: ações tentam reconhecer direitos dos não humanos. 15 set. 2017. Disponível aqui.
CANAL RURAL. Cavalo recebe habeas corpus e deixa isolamento sanitário de 3 anos. 29 jul. 2020. Disponível aqui.
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. (12. Câmara de Direito Público). Agravo de Instrumento nº 2139566-66.2019.8.26.0000. Agravo de instrumento. Produção antecipada de provas. Equino de raça apurada supostamente contagiado pela Doença de Mormo. Confrontação do resultado da perícia oficial com análise laboratorial particular realizada na Alemanha à expensas do agravante. Admissibilidade. Colação à guisa de prova meramente documental. Interlocutória reformada. Dúvida razoável superveniente quanto ao efetivo contágio do animal. Recurso provido, com determinação anexa de cessação do regime de isolamento sanitário. Agravante: Felipe Hamilton Loureiro. Agravada: Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Relator: Desembargador Souza Meirelles, 17 de junho de 2020. Disponível aqui.
TJ-SP dá habeas corpus a cavalo em isolamento sanitário há três anos. 29 jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 29 jul. 2020.
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