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“E se meu filho fosse vítima de estupro?”


Por Gabriela Garcia Damasceno


Dentre os diversos delitos que podem ser cometidos pelo homem, indubitavelmente, o estupro de crianças é um dos mais horrendos, senão o pior deles. Sempre tive esta percepção mesmo antes de trabalhar diretamente na atividade policial. Atualmente, sendo responsável pela investigação dos crimes contra criança e adolescente, tenho ainda mais certeza desta afirmação.

É cediço que a pedofilia nem sempre foi tratada como crime, sendo que apenas a sociedade moderna, a partir do século XIX,  passou a criminalizar tais condutas, conforme relata o historiador Thomas LACQUEUR (veja aqui).

Nos Estados Democráticos contemporâneos, o combate ao envolvimento sexual de crianças sempre foi uma realidade. No Brasil, esta atuação não foi diferente, razão pela qual, além da tipificação de diversas condutas consideradas correlatas a pedofilia, o legislador entendeu tratar-se de estupro de vulnerável a prática de atos libidinosos com alguém menor de quatorze anos, deixando claro a incapacidade destes vulneráveis darem consentimento para as práticas sexuais citadas, posição esta que inclusive foi reforçada pelo STJ em decisão tomada em 25 de agosto de 2015 (veja aqui).

A conduta do estupro de vulnerável é tão triste e desprezível que nela o legislador impôs uma das penas mais severas do nosso Direito. Enquanto estudante de Direito, nada parece mais coerente frente a repugnância de tal crime, considerado inclusive como crime hediondo. Todavia, o que vemos na prática é um conjunto de políticas públicas e procedimentos formais que notadamente, são responsáveis pela revitimização, impunidade e inoperância de nossas leis, senão vejamos.

Para compreendermos bem o contexto dos crimes de estupro de vulnerável deve-se, antes de tudo, traçar um paralelo entre estes crimes em especial  e o estupro comum, no que tange, sobretudo, ao modus operandi. Se pensarmos no crime de estupro convencional, praticado contra adultos, que chega ao conhecimento da Autoridade Policial para a busca de providências, fica claro que, normalmente, estamos diante de uma pessoa que foi vítima de um desconhecido que, aproveitando de uma oportunidade dada por um lugar ermo (normalmente nas próprias vias públicas) e pela falta de terceiros próximos, consuma seu ato e despreza a vítima após sua realização. A vítima, por sua vez, na maioria das vezes nunca viu o autor.

Já no estupro de vulnerável, os autores que normalmente o praticam são pessoas da esfera de confiança da vítima e de seus familiares. Possui acesso ao lar e a criança e, utilizando-se desse acesso, aproveitam-se dos momentos em que estão a sós para praticar os mais diversos atos sexuais com a criança no interior de locais particulares (na própria casa, em escolas, igreja, carros, etc) onde a família não imaginava estar a criança em risco. Ademais, utilizando-se normalmente de seu poder de convencimento sobre uma criança, muitas vezes o autor a ameaça, chantageia, ou lhe promete amor eterno, possibilitando que as práticas perdurem, muitas vezes, por anos.

A partir disso pode-se perceber a dificuldade na elucidação e condenação dos autores de estupro de vulnerável. Inicialmente, destaca-se que estes autores normalmente não são pegos em flagrante. Suas vítimas passam anos sob sua tutela, dando sinais aos seus familiares sem que sejam entendidas e, comumente, quando a família toma conhecimento e decide tomar providências, estamos diante de fatos ocorridos à longa data, cujos exames médico-legais não são hábeis a propiciar uma afirmação sobre sua ocorrência ou não.

Testemunhas destas práticas normalmente não existem, sendo que o que se tem como prova, na grande maioria das vezes, são as informações prestadas pela vítima, cuja idade na data dos fatos necessariamente é menor de quatorze anos, podendo, inclusive ser uma vítima cuja fala ainda é extremamente limitada ou até inexistente. Na melhor das hipóteses – se é que existe situação melhor diante de algo tão repulsivo –, algum terceiro pode vir a ter presenciado o fato (normalmente a genitora ou algum outro parente), devendo ser ouvido na condição de testemunha presencial. Assim, na prática mantem-se o contexto de um discurso contra o outro como único elemento de prova para fundamentação de uma condenação. Nesse ponto, destaco que, em que pese à existência de doutrina e algumas decisões destacando a importância fundamental das declarações da vítima de estupro e a possibilidade desta ser a prova crucial para fundamentar a condenação, na prática, o que vemos é um universo de difícil condenação quando diante de prova única.

Se a dificuldade no universo probatório é evidente, ainda cabe o destaque para como as vítimas participam do processo de produção de provas e, normalmente são revitimizadas de forma nefasta.

Quando diante de situação flagrancial, as vítimas são inicialmente inquiridas pela família que, aciona a polícia a quem a criança normalmente revive todas suas angustias relatando informalmente o ocorrido. A partir daí, infelizmente, dá-se início a uma maratona que aparenta não ter fim. A vítima é levada a um atendimento médico onde é inquerida por médicos e, às vezes, por outros profissionais da rede como enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais.

Após ser dado início ao inquérito, estando ou não em flagrante, mas uma vez a vítima vai ser ouvida, comumente, sem qualquer suporte de um psicólogo, devendo a Autoridade Policial buscar as informações de relevância para a investigação e posterior condenação. A vítima, como um animal enjaulado, nem sempre corrobora, deixando que a prova se esfacele sem que nada pudesse ter sido feito.

Posteriormente, já na fase processual, em audiência de instrução e julgamento, perante o Juiz de Direito, Promotor de Justiça, advogado do réu e, muitas vezes, até o próprio réu, a vítima é chamada a prestar novas informações onde, por diversas vezes, tem sua moral nitidamente posta em cheque, principalmente quando diante de vítimas com idade próxima aos quatorze anos estipulados pela lei.

De todo esse processo, notoriamente causador de muito sofrimento para as vítimas e seus familiares, e que, nem sempre produzirá uma condenação, deixando impunes diversos estupradores, por diversas oportunidades me vi diante de um questionamento: e se meu filho fosse vítima de estupro? Essa seria a Justiça que teríamos? A partir daí, me vi pensando em como tornar o atendimento à vítima mais humanizado. Existem caminhos possíveis e em outra oportunidade discutiremos sobre eles. Nesse primeiro momento, deixo apenas essa reflexão: e se seu filho fosse vítima de estupro?

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Gabriela Garcia Damasceno

Delegada de Polícia Civil (MG) e Professora

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