De enfermeira à motorista de aplicativo de transportes: Elize Matsunaga, livramento condicional e a necessidade de emprego fixo do liberado
Texto por:
Felipe Faoro Bertoni
Valentina Macari Haupenthal
Recentemente a notícia de que Elize Matsunaga estava trabalhando como motorista de aplicativo de transportes alcançou posição de destaque nos noticiários e gerou uma série de dúvidas sobre a sua situação penitenciária. Afinal, Elize já terminou ou ainda está cumprindo a sua pena? A realidade é que Elize se encontra na fase final de cumprimento da pena a ela imposta, gozando de um benefício previsto na legislação de execução penal denominado de livramento condicional.
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O livramento condicional pode ser definido como a antecipação provisória da liberdade do condenado, que, cumpridos determinados requisitos, obtém o direito de cumprir o restante de sua pena fora do cárcere. Trata-se de instituto cuja finalidade é antecipar – pois aplicado ainda no decorrer do cumprimento da pena – a reinserção do apenado no convívio social. Vale dizer, intenciona-se permitir, gradualmente, o contato do condenado com as normas sociais, ainda enquanto sob a tutela do sistema penitenciário (visto que há uma série de condições que devem ser observadas no período de prova do livramento condicional), o que, em tese, facilitaria o seu retorno à sociedade sem qualquer supervisão por parte do sistema de administração da justiça penal após o integral cumprimento de pena.
Neste ponto, cumpre ressaltar que o livramento condicional não deve ser considerado direito ou privilégio do apenado, haja vista que constitui uma das formas de execução da pena privativa de liberdade. Nesses termos, tal benefício exprime um direito relativo, que tem como objetivo ressocializar o infrator no ambiente social e, em alguma medida, desafogar o sistema carcerário.
Em prosseguimento, cabe destacar quais são os requisitos para obtenção do livramento condicional. A legislação de regência estabelece que o instituto é cabível para os condenados a pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos. Como requisito objetivo tem-se a necessidade de (i) cumprimento de mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes; (ii) a necessidade de cumprimento de mais da metade da pena se o condenado for reincidente em crime doloso ou (iii) a necessidade de cumprimento de mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, tráfico de pessoas e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.
Além da obrigatoriedade de cumprimento de um quantitativo mínimo de pena, variável de acordo com a natureza da infração e das circunstâncias pessoais do apenado, em todos os casos exige-se a comprovação de: (i) bom comportamento durante a execução da pena; (ii) não cometimento de falta grave nos últimos doze meses; (iii) bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído, (iv) aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto e (v) reparação do dano causado pela infração, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo (requisitos subjetivos). Há, ainda, uma exigência especial para os sujeitos condenados por crimes dolosos cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. Nessa hipótese a concessão do benefício ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir.
Uma vez preenchidos os requisitos para a concessão do benefício, deve o juízo da execução autorizar que o apenado usufrua do livramento condicional, estabelecendo, contudo, algumas condições que devem ser observadas, sob pena de possível revogação da benesse. Existem condições obrigatórias e condições facultativas.
As condições obrigatórias são as seguintes: (i) obter ocupação lícita, dentro de prazo razoável se for apto para o trabalho; (ii) comunicar periodicamente ao Juiz a sua ocupação e (iii) não mudar do território da comarca do Juízo da execução, sem prévia autorização deste. Por outro lado, constituem-se condições facultativas a obrigação de (i) não mudar de residência sem comunicação ao Juiz e à autoridade incumbida da observação cautelar e de proteção, o (ii) recolhimento à habitação em hora fixada e (iii) a proibição de se frequentar de determinados lugares.
Feitos esses breves esclarecimentos sobre o instituto do livramento condicional, convém retornar ao caso de Elize Matsunaga, condenada por matar e esquartejar o seu ex-marido, diretor da empresa alimentícia Yoki, cenário que tornou emblemático o caso criminal conhecido como “Caso Yoki”. Pelo que se dessume das informações noticiadas, tem-se que Elize está ainda em cumprimento de pena, mas gozando do benefício do livramento condicional. Ou seja, o juízo da execução penal responsável por regular os incidentes do cumprimento de pena considerou preenchido o requisito objetivo (cumprimento de certo quantitativo de penal) e os requisitos subjetivos (bom comportamento durante a execução da pena, não cometimento de falta grave nos últimos doze meses, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto).
Uma das condições para que Elize pudesse usufruir de forma plena da sua condição de liberada era a obtenção de ocupação lícita, dentro de prazo razoável, o que fez ela, pelo que consta nas informações noticiadas, por meio da atividade de motorista de aplicativo. Desde uma perspectiva dogmática, nenhuma irregularidade ou inadequação há na situação examinada, tratando-se de mera aplicação de instituto previsto no âmbito da execução penal.
Criminologicamente, contudo, a questão é mais complexa, na medida em que a essa exigência relativamente simples (obtenção de emprego) pode adquirir contornos extremamente desafiadores para os sujeitos submetidos ao sistema penitenciário. Ora, é compreensível a preocupação do legislador ao estabelecer a necessidade de obtenção de trabalho lícito por parte dos apenados, uma vez que obter ocupação, nesse contexto, tem o sentido de encaixar no mercado de trabalho o sujeito que, antes, encontrava-se à margem da sociedade, pois encarcerado. Todavia, há uma grande possibilidade de que os apenados tenham dificuldades de encontrar emprego lícito em prazo razoável, uma vez que, na maioria das vezes, não possuem formação técnica ou acadêmica suficiente, o que dificulta a sua contratação por não preencher minimamente os requisitos exigidos pelo mercado de trabalho, além de carregarem consigo as indeléveis marcas do sistema penitenciário.
Para que o apenado consiga, de fato, um lugar digno no mercado de trabalho, o artigo 18 da Lei de Execução Penais prevê que a educação de primeiro grau será obrigatória, mas na prática não é o que se vê nos presídios brasileiros. Para que se possa mudar de perspectiva, a reinserção pela escolarização e pelo trabalho deve ser colocada em prática para que a sociedade sinta confiança em acolher os ex-detentos. É compromisso do Estado disponibilizar oportunidades e mecanismos para que o apenado possa ter uma adequada formação educacional e profissional
Além da dificuldade em se recolocar no mercado de trabalho, os presos que trabalham durante cumprimento de pena não se sujeitam ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Diante da dificuldade de reinserção social, o resultado tem sido, em muitos casos, o retorno à criminalidade. Nota-se que o sistema prisional brasileiro não foi criado para ressocializar o detento, pois não oferece educação efetiva.
Não bastasse o entrave referente à questão educacional, há, consoante já destacado, o estigma incidente naquelas pessoas que carregam consigo a etiqueta do sistema penitenciário. Afinal, não há nada de errado em Elize estar trabalhando como motorista de aplicativo de transportes. Pelo contrário, trata-se de indicativo que está ela buscando adimplir as condições necessárias para poder usufruir do livramento condicional a ela concedido.
O fato de essa circunstância ter adquirido tanta repercussão nos noticiários e nas redes sociais, gerando diversos comentários maldosos, somente demonstra o quão desafiadora pode ser a reinserção social dos apenados, tendo em vista que o simples fato de trabalhar pode ser motivo de comoção.