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Em caso de nulidade, quebre o vaso

Em caso de nulidade, quebre o vaso

Conta a lenda que após a morte do Rei, seu filho – de apenas cinco anos de idade – assumiria o trono e necessitaria, evidentemente, de amparo e segurança. Para tanto, foram convocados os melhores guerreiros do país para concorrerem ao honroso cargo de Guarda do novo Rei. Quando estavam todos na sala, o Chefe da Guarda Real, um senhor com cabelos da cor dos gelos da madrugada, iniciou:

– Somente um de vocês será escolhido para proteger o Rei. O escolhido deverá protegê-lo contra tudo e contra todos!

– Tragam o vaso, ordenou!

Nesse momento entraram dois criados carregando um enorme e valioso vaso pintado à mão com detalhes em ouro. Então continuou o Chefe da Guarda:

– Esse lindo e valioso vaso representa a estrutura familiar do Rei. A peça é de extrema importância para o Reino e está na família há mais de 600 anos. É o símbolo do poder da família real. Esse vaso, preciso avisá-los, poderá gerar no futuro certo perigo para o Rei. 

Nesse momento foi interrompido por um guerreiro que puxou a espada e quebrou a linda peça de porcelana.

Após cessarem os sussurros de espanto, o Chefe da Guarda parabenizou-lhe pela rápida ação e lhe anunciou como novo Guarda do Rei.

Ora, independentemente da importância e autoridade daquele objeto, não poderia, de forma alguma, representar risco à vida do Rei. Por isso deveria ser prontamente eliminado, como o foi.

Assim deve ser a ação do advogado diante de uma nulidade processual. Deve imediatamente consignar o protesto em ata no exato momento em que ela ocorre, sob pena de perder a oportunidade e permitir a preclusão da matéria.

Vejam esse caso:

A Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por unanimidade, anulou julgamento do Tribunal do Júri devido a utilização de jurados suplentes sem a realização de sorteio e sem necessidade.

É o segundo caso que atuo como Advogado de defesa em que ocorre a mesma situação: para evitar a cisão processual, mesmo existindo número suficiente de jurados titulares presentes para a instalação da sessão, a Juíza optou por completar a lista com jurados suplentes previamente sorteados, evitando, assim, que as recusas legais de jurados pelas partes gerassem o estouro de urna.

Nos dois casos – que envolvem processos de repercussão com pluralidade de réus (quatro réus em cada processo) e ampla divulgação pela imprensa, inclusive com transmissão do julgamento ao vivo – a medida foi tomada com o propósito claro de evitar a cisão processual, gerando prejuízo irreparável aos réus, eis que a separação dos julgamentos garantiria mais tempo para defesa refutar os argumentos da acusação durante os debates. A medida alterou também substancialmente a estratégia de recusas da defesa e violou o princípio do Juiz Natural.

O artigo 463 do CPP estabelece que a sessão será instalada se houver o número de 15 jurados titulares. A estrutura do Tribunal do Júri e a característica da periodicidade do corpo de jurados exige uma adaptação da essência do princípio do juiz natural e da própria imparcialidade que deve nortear o julgamento, significando a observância irrestrita ao procedimento estatuído no CPP.

A presença de jurados titulares em número suficiente para a instalação da sessão e a modificação posterior da composição da urna com a inclusão de jurados suplentes para que não haja cisão processual constitui verdadeiro casuísmo no julgamento.

Como bem pondera Aury Lopes Jr., “o princípio do juiz natural é um princípio universal, fundante do Estado Democrático de Direito”. O acusado no processo penal tem direito a um julgamento imparcial, não sendo possível a modificação do órgão julgador com finalidades escusas.

O juiz natural é pilar do sistema jurídico brasileiro, constante do rol de direitos fundamentais e que se sobrepõe, inclusive, às normas programáticas de proteção da entidade familiar previstas no artigo 226 da Constituição Federal.

Em seu voto, o Desembargador Rinez da Trindade, relator da apelação, destacou:

(…) A sessão foi instalada com 20 jurados titulares, ou seja, número suficiente para o início dos trabalhos da Sessão do Júri, conforme estabelecido no artigo 463 do Código de Processo Penal. Entretanto, a Juíza-Presidente optou por incluir, talvez por cautela (ou outro motivo), cinco (5) jurados suplentes, escolhidos de forma aleatória, entre os dez (10) suplentes previamente sorteados, mesmo diante da manifestação de protesto da defesa, que destacou, com razão, a presença de evidente prejuízo por excluir a possibilidade de cisão processual pelo estouro da urna, retirando, desse modo, o tempo de fala em Plenário para cada defesa, já que se trata de processo com quatro acusados. Outrossim, obrigou a defesa a modificar sua estratégia de recusas imotivadas de jurados. Desse modo, mostra-se evidente, diante do protesto consignado em Ata (fl. 851), que não houve aceitação pela Defesa, da referida inclusão de cinco jurados suplentes, efetuado pela Juíza-Presidente do Tribunal do Júri, sem o devido sorteio. Apontando, a Defesa, violação aos artigos 433 e 463 do Código de Processo Penal. Apelação no. 70082123043.

Nesse caso, a defesa fez a seguinte e imediata consignação:

2. INSTALAÇÃO DA SESSÃO E JULGAMENTO- Arts. 463 do CPP.

[…] Após a chamada dos jurados, a defesa da ré arguiu que o art. 463 do CPP dispõe que, em comparecendo 15 jurados o Juiz deverá declarar a abertura dos trabalhos. Assim, a inclusão de cinco jurados suplentes, quando presente o número legal de jurados, gera cerceamento de defesa e nulidade processual, uma vez que, com o número de 20 jurados titulares a sessão deveria ser instalada, possibilitando, dessa forma, inclusive, a cisão processual pelo estouro de urna (única modalidade admitida pelo CPP). O prejuízo à ré se torna claro na medida que a cisão processual garantiria mais espaço e tempo de fala durante os debates, possibilitando uma defesa mais efetiva. Nesse ponto, resta violado o art. 463 do CPP. No mesmo sentido há violação ao art. 433 do CPP, já que foram incluídos cinco nomes de suplentes na urna sem que houvesse sorteio. Registra-se que na solenidade de sorteio dos jurados (art. 433 do CPP), foram sorteados 10 jurados suplentes, no entanto, cinco foram escolhidos na data de hoje para compor a urna, sem a existência de sorteio diante das partes. O prejuízo decorre da violação do princípio do Juiz natural e por modificar substancialmente a estratégia defensiva de recusas de jurados.

Como vimos, é fundamental que seja feita a consignação da nulidade na ata de julgamento, sob pena de arguição de preclusão da matéria. O momento adequado para o registro dessa nulidade é logo depois de anunciado o julgamento e apregoada as partes, de acordo com o artigo 571, V do CPP, eis que se trata de nulidade posterior à sentença de pronúncia. 

Outro ponto a ser observado é a necessidade de demonstrar, no momento da consignação, o prejuízo que essa nulidade processual gera à defesa, pois de acordo com o artigo 563 do CPP, nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.

Portanto, quando nos deparamos com uma nulidade processual, devemos lembrar de consignar nosso protesto imediatamente, quebrando o vaso, assim como fez o diligente e acautelado Guarda do Rei.


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Ezequiel Vetoretti

Advogado criminalista

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