Em defesa daqueles que “não podem” discutir política
Por Vitor da Matta Vivolo
Dentre as diversas abordagens possíveis nos estudos das Ciências Humanas e Sociais existe uma cujo campo me é especialmente caro: a análise do discurso. Área esta cujo objetivo é justamente explorar as formas de criação, manutenção e perpetuação de discursos na história das sociedades. À nossa volta, todas e quaisquer falas podem ser problematizadas e desconstruídas, de forma a revelar suas possíveis origens e intencionalidades.
Como historiador, sou constantemente (e obviamente) indagado sobre eventos do passado. A mim, supostamente cabe o cargo de possuir uma memória impecável e universal: a expectativa é a de que eu possa relatar nos mínimos detalhes algum evento de mais de cinco séculos atrás, ocorrido do outro lado do mundo. A frustração é visível quando sou inclinado a responder que não possuo um repertório enciclopédico sobre a história da humanidade. A cada episódio desses que se repete, perturba-me pensar o motivo de tal expectativa e o peso atribuído a mim.
Não sou “detentor” do passado, sou um estudioso dele. Mesmo que me debruce anos sobre livros de História, jamais possuirei a universalidade dos fatos e, muito menos, saberei tudo “exatamente como ocorreu”. Meus materiais de pesquisa são documentos, relatos antigos; rastros dessas épocas fisicamente inacessíveis (visto que não existem máquinas do tempo)… Todos esses materiais, bases das minhas pesquisas, são completamente influenciados pela subjetividade daqueles que o produziram e da época na qual surgiram. Não existe neles nenhum discurso inabalável ou incontestável.
Diante dos atuais acontecimentos políticos na história do país, ouvi de alguns colegas colocações precedidas por “você que estuda essas coisas”, “você que entende de política”, “você que sabe dos acontecimentos históricos”… A princípio, todas soam perfeitamente lisonjeiras, atribuindo-me integridade de palavra e autoridade. O problema, infelizmente, é essa tal de “autoridade” pressuposta.
Realmente, estudo há quase seis anos nossa história como civilização, conheço correntes historiográficas, busco constante contato com o passado… mas, afinal, quem decidiu que meu diploma me faz “mais sábio” que aqueles que não compartilham de minha formação? A sensação, palpável, é de que alguns simplesmente não podem discutir certos assuntos. São “ignorantes” e, ao indagar qualquer questão, devem exibir sua condição de “inferioridade” e desculpar-se de antemão.
Michel Foucault, em dezembro de 1970, conferiu uma aula inaugural no Collège de France posteriormente batizada e publicada como “A Ordem do Discurso”. Nela, apresentou uma breve súmula da hipótese central de seus trabalhos: “suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua temível e pesada materialidade”. Ou seja, nada é dito simplesmente “por se dizer”, não se “fala por falar”. A sociedade é uma amálgama de vozes cuja intenção é perpetuar seus desejos e, se necessário, deturpar a mesma missão de suas concorrentes. Foucault ainda dizia que “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (grifos meus).
A modernidade trouxe consigo a especialização e a setorização do saber. A antiga figura da sabedoria democrática grega – discutindo-se hipóteses em praça pública – cada vez mais perdeu visibilidade, proporcionalmente ao surgimento e angariamento de poder social das instituições especializadas no saber: monastérios, escolas, universidades…
O bacharel, o formado, o “sábio”, o “estudado”, o “diplomado”, são os únicos autorizados hoje em dia a se pronunciar abertamente sobre assuntos julgados importantes. Isso se dá pois nosso imaginário identifica o processo (elitizado, diga-se de passagem) de sua formação como a coroação da verdade inegável em seus discursos. “Se o dr. disse, deve ser verdade”, não é mesmo?
Outro exercício, relacionado ao mesmo berço discursivo, é a criação de “dialetos” em suas áreas de saber. Desta forma, é possível o compartilhamento de um código comportamental e discursivo que una tais personagens e, simultaneamente, exclua as demais. Novamente, exemplos práticos: textos medicinais, científicos, jurídicos, acadêmicos. É proposital a forma como se tornam ilegíveis a grandes parcelas da população, são discursos cuja circulação não é intencionalmente livre. As autoridades do saber escrevem sobre e para as outras autoridades do saber. Os “menores”, “ignorantes” e “não estudados” não devem ser ouvidos pois, supostamente, seus discursos sequer tem impacto ou importância.
É necessário que tentemos ao máximo sublimar esse silêncio imposto, devido à situação tão delicada em que nos encontramos em nosso país. Não defendo aqui que falemos o que quisermos, inconsequentemente. Discursos de ódio – vide os tantos proferidos na votação passada – ou portadores de segregação velada devem ser justamente problematizados, tornando transparentes suas intenções e, enfim, colocados em debate aberto e acessível a todas as parcelas sociais. Cabe a todos nós, como cidadãos, como sujeitos históricos, como seres sociais que compartilham dessa comunidade cujo destino está em jogo, alargar o grupo de sujeitos a serem ouvidos e convidados a falar. A liberdade intelectual e discursiva deve ser também questão em pauta.
Portanto, não pensemos que apenas as mesas de bares são campos de discussão livre, onde “tudo se pode discutir”. Torna-se necessário convidar a todos, cordialmente, a serem participantes e se posicionarem sobre nossos papéis sociais. Devemos dar as devidas pás de cal ao “você sabe com quem está falando?” e “fulano não sabe o que fala”. Nós ainda não somos todos “diplomados”, mas todos temos voz.
“O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si”… Já dizia Michel Foucault.