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Em nome do pai: o que acontece quando prendemos inocentes


Por Maurício Sant’Anna dos Reis


A comemoração sobre a condução coercitiva de Lula no dia de hoje para que prestasse depoimento perante a PF parece coroar, ao menos provisoriamente, mais uma onda autoritária do direito processual penal brasileiro. Depois da decisão do STF acerca da flexibilização da presunção de inocência, da que estende o conceito de juiz natural nos casos de juízes convocados e da que confere autorização para consulta de informações bancárias (sigilosas) diretamente pela Receita Federal parece cada vez mais forte a tendência em se afirmar que passamos por um Estado de Exceção – como muito se tem observado – no qual os direitos democraticamente protegidos são excepcionados por conta de determinada situação específica. Em outras palavras, na atualidade a exceção autoritária se torna regra no Estado Democrático.

Ante ao regozijo geral que tais fatos têm causado, amealhando para fileiras autoritárias, inclusive, respeitados autores conhecidos por estudos garantistas, além, evidentemente, do grosso caldo do senso comum e de certa parcela de eleitores ressentidos, enquanto, concomitantemente, conhecido jurista, professor e autor na área penal e processual penal, na propaganda institucional de curso de pós graduação defende a flexibilização da proibição da tortura em casos de excepcional relevância (mais uma vez a exceção), acredito que seria interessante propor o olhar por outra perspectiva, por um viés cinematográfico. Afinal, se a realidade parece enrijecer os sentidos e deturpar o bom senso, talvez a obra de caráter ficcional, ainda que baseada em fatos reais, possa nos acordar do sono da razão.

‘Em nome do pai’ (1993), de Jim Sheridan, retrata elementos que podem contribuir para entender a importância da proteção das garantias e direitos fundamentais e, no mínimo, sobre a imperiosa necessidade de respeitar as regras do jogo do processo penal democrático. Com isso me exonero de adentrar em pontos mais técnicos/jurídicos, até mesmo porque uma infinidade de autores qualificadíssimos já se ocupou nas últimas semanas de rechaçar todos os pseudo fundamentos de mais essa onda autoritária.

Na Iralanda do Norte de 1974, o medo do IRA e de possíveis atos de terrorismo mobiliza as forças britânicas para um sistema de vigilância militar. De outro lado focos revolucionários resistem contra a opressão imperialista da rainha. Nesse cenário, o jovem Gerry Conlon (Daniel Day-Lewis) não encontra amparo nem por um lado nem por outro. Se por um lado compartilha o ódio de seus conterrâneos pelas forças reais, de outro não possui o entusiasmo revolucionário, dedicando-se a prática de pequenos furtos e outras atividades ilegais. Pressionado pelo entorno, sem trabalho nem perspectivas vê-se impelido, inclusive pelo pai Giuseppe Conlon (Pete Postlethwaite), a viajar para Inglaterra e lá tentar a sorte.

Nas imediações de Londres, sem qualificação e enquanto vivia em meio a uma comunidade hippie – na qual igualmente não se adequou – Gerry não encontra sorte melhor do que a que tinha em Belfast. Em uma noite vagando perdido pelas ruas encontra, por assim dizer, as chaves de um apartamento na calçada em frente a porta, entra no local e lá pratica um grande furto que lhe permitiria pensar que sua sorte estaria mudando. Concomitantemente a isso, contudo um atentado à bomba em um pub perto dali chama atenção da polícia para o jovem irlandês (prototípico terrorista) que retornara à Belfast. Com base em uma lei (de exceção) que permitiria a prisão por até sete dias de suspeitos de terrorismo, Gerry é conduzido para prestar informações. Durante sua prisão, Gerry é torturado e acaba por assinar uma confissão forjada que redundaria, posteriormente em sua condenação por um crime que não cometeu. No intuito de ajudar o filho, Giuseppe viaja à Inglaterra e é igualmente preso, torturado e condenado.

O filme deixa claro que nem Gerry, nem Giuseppe tiveram qualquer participação no atentado. Da mesma forma, também fica claro que não existiriam provas robustas capazes de incriminá-los. O que existe são confissões tomadas em porões e sob tortura. Não cabe falar em presunção de inocência e permite-se a tortura em vista da tida por necessária flexibilização de direitos e garantias para fins de combate ao terrorismo. Elege-se o inimigo, o outro, o estrangeiro e lhe nega qualquer possibilidade de resistência.

Quando, portanto, se questiona o método da famigerada operação lava-jato, ou de outras operações de grande apelo midiático, quando se critica o autoritarismo nas decisões do STF ou dos demais Tribunais, ou quando se rechaça que um jurista defenda, ainda que de maneira excepcional, a tortura, não se está indo em defesa de práticas criminosas, pelo contrário, se está, quase que como nos trabalhos de Sísifo, tentando evitar o abuso do poder do estado. Conduzir coercitivamente quem não tenha se negado a participar do ato não por objetivo a justiça, talvez a autopromoção, negar a presunção de inocência não garante o fim da impunidade, ao contrário desqualifica qualquer debate minimamente sério sobre o caso penal, permitir a tortura não garantirá maior efetividade do sistema penal, se bem que, como já alertara Piero Verri no século XVIII, permitirá que inocentes confessem crimes que não cometeram. Ao se defender um processo minimamente justo, portanto, ao contrário do que se reverbera por aí, não se está assumindo uma posição partidária, se está tão somente lutando pela defesa dos direitos fundamentais, afinal se com essa facilidade se negam direitos a figuras públicas, imaginem o que deve acontecer nos porões da justiça brasileira.

MauricioReis

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