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Em tempos de desunião, vale relembrar a origem do Common Law


Por Vilvana Damiani Zanellato


No último mês, conforme ampla e mundialmente noticiado, apesar de não ter efeito vinculante, a população do Reino Unido decidiu retirar-se do bloco europeu. Basta relembrar a origem do Common Law, para se concluir que a característica de individualidade apenas permanece, e que a história somente se repete.

Isso porque, diversamente das demais unidades estatais da Europa Ocidental, a Inglaterra, já desde seus primórdios, segue trajetória própria na formação do seu sistema constitucional[1].

Palco de consideráveis turbulências, nas Eras Medieval e Moderna, decorrentes do confronto pelo poder da Realeza, dos Senhores Feudais, da Igreja, da População, da Burguesia e do Parlamento, tendo sempre a figura do Rei em um dos polos, os demais atuavam em busca de um equilíbrio de forças.

As lutas constantes e a situação de extrema instabilidade resultaram na edição de uma Carta, que nada mais retratou senão costumes e decisões proferidas pelos tribunais, com teorias e doutrinas que formavam o arcabouço do Common Law. Consagrou-se um conjunto de princípios e de diretrizes que impunham limites ao poder real, fazendo prevalecer uma série de direitos (e sua preservação) individuais do cidadão: liberdade, propriedade e limite do poder de tributar do Rei.

Pois bem, na Idade Média, destacaram-se a Magna Carta e as suas versões subsequentes, enquanto que, na Idade Moderna, surgiram a Bill of Rights e o Act of Settlement, que formaram o Common Law.

Tendo inicialmente os costumes como única fonte de direito, no decorrer do Século XIII, as jurisdições da Coroa se desenvolveram em detrimento das locais e mantidas pelos Senhores Feudais. As Royal Courts of Justice foram construindo teorias e reuniram banco de julgados que formaram os primeiros fundamentos do Common Law. As decisões mais relevantes foram compiladas nos Year Books. A ausência sucessiva dos homens que assumiram a realeza prestou-se a demonstrar a possibilidade de o reino ser administrado sem a presença do Rei. A busca do equilíbrio entre a ordem expressa no poder do Rei e as liberdades privadas provocou aperfeiçoamento das instituições jurisdicionais, das leis e da sua organização como meio de abster as investidas da Coroa.

Torna-se visível o nascimento do Parlamento e a separação entre o Judiciário (Corte de Justiça) e o Executivo (Administração).

A propósito, na Inglaterra, não se consolidou o absolutismo da realeza, que sempre teve em seu caminho o senhorio, evitando que o poder perpetuasse totalmente nas mãos do Rei. A relação do Rei com os nobres sofreu abalo, resultando, ainda que de modo tímido, em certa limitação de seu poder. O Rei tinha poder de direito, mas não de fato, pois precisava “pedir” aos Senhores Feudais. Muito embora presente a monarquia, o modelo de governo inglês era regido pelo Parlamento.

Foi daí que surgiu a primeira versão da Magna Carta, que representava atendimento aos pleitos dos barões feudais, que após diversas revisões passou a ser considerada soberana e reconhecida como um legítimo estatuto do Common Law. A consolidação do poder monárquico passou a ser instrumentalizada por meio de norma jurídica de natureza fundamental e estruturante.

Aparece um conceito superior à ideia da realeza, a ideia da Lei, sendo atribuída natureza de norma suprema à Carta Magna, começando-se a formular, com mais precisão, a ideia da lei como uma entidade com vida própria, distinta do poder real, ou seja, algo superior ao Rei, que deveria governar segundo suas normas, que representa a vontade nacional, perdurando como razão importantíssima na luta pela conquista da liberdade humana (LOMAS, 1941:103).

Aos poucos, desenvolveu-se sistema, com bases históricas e fundamentadas, que mostrou força para se contrapor às ingerências do poder real[2], tendo os juízes maior autonomia, tribunais, consolidação e organização de decisões, sistematização de precedentes viabilizando maior coerência dos julgados e, por consequência, maior credibilidade junto ao povo, todo um arcabouço consagrando direitos adquiridos e consubstanciados no Common Law.

Esse mesmo sistema, é certo, foi quase que totalmente esquecido e enfraquecido, em razão do surgimento e sobreposição do Equity, que se amparava em critérios de ordem extremamente subjetiva, discricionário e de fácil desvirtuamento[3].

No entanto, na Era Moderna, com a Revolução Gloriosa e a formação do Bill of Rights e do Act of Settlement, o quadro muda de figura.

A concentração de poder na Rainha Elisabeth, com a prevalência das demandas administrativas sobre as de ordem legal, passou a ser questionada, resultando na retomada do Common Law.

Sir Edward Coke – Chefe da Court of Common Pleas – defendia o controle judicial dos atos do Parlamento, ao ponto de admitir, expressamente que na hipótese de o juiz aplicar o Common Law era possível a anulação da lei editada pelo Parlamento se contrária à própria Common Law e se usurpasse as prerrogativas advindas da realeza (REIS, 2001:370).

Havia divergência sobre a natureza dos valores que cada lado defendia. De certo ângulo, a Coroa com poder divino representava a inovação e o Parlamento a tradição, o lado conservador, que restringia, de maneira prejudicial, os poderes do Rei e os seus limites de atuação com base em precedentes da Era Medieval. Por outro prisma, na medida em que o Rei legitimava seu poder com decisões judiciais amparadas no dogma do direito divino e o Parlamento fundamentava tecnicamente sua tese com base nos documentos de Common Law, entendia-se que o Rei representava o conservadorismo e o Parlamento a inovação.

Sir Edward Coke defendeu a utilidade de uma lei fundamental neutra para mediar o conflito entre Coroa e Parlamento, enfatizando que ideias novas podem, sim, florescer em campos com bases antigas, mas plenas de sabedoria, aplicando a tese no Dr. Bonham`s Case de 1610. Na oportunidade, foi julgado caso sobre o exercício da medicina que, de acordo com a lei vigente, estaria restrito à cidade onde havia se formado o médico, que, por isso, não poderia atuar em outra localidade. Para Sir Edward Coke o regramento não se aplicava, amparando-se – ainda que em desacerto – em fundamentos do Common Law. Dessa interpretação, pode-se concluir-se, então que o poder de legislar do Rei seria limitado e submetido a um controle maior.

Em ambiente de muita tensão, entre não convocação e convocação do Parlamento pela realeza, num quadro de grande perturbação social, inclusive com representação de camadas mais humildes, como camponeses, produtores e trabalhadores, lutando por uma sociedade sem classes, reforma agrária, igualdade de condições, direito a voto, dentre outros, o povo passa a se ver representado pelo Parlamento.

A guerra civil foi inevitável, eclodindo, na sequência, a Revolução Gloriosa.

Pautado no Estado Liberal, baseado no direito natural, o homem-súdito transforma-se no homem-cidadão, nos moldes da tríade liberdade, igualdade e fraternidade e na concretização de direitos fundamentais (BONAVIDES, 2007:29-62). Como resultado, tem-se a formalização de grandes documentos constitucionais da história inglesa, the Bill of Rights e the Act of Settlement, sedimentados no resgate dos fundamentos do Common Law. A finalidade do Estado passa de garantidor da ordem e da estabilidade mediante substancial intervenção na vida dos indivíduos para um papel de assegurar as liberdades individuais, regaste e proteção à iniciativa do indivíduo mediante uma intervenção mínima.

A Bill of Rights trouxe as seguintes e importantes disposições:

  • é ilegal pretenso poder de se suspender as leis ou sua execução sem consentimento do Parlamento;
  • é ilegal criação de cortes para causas eclesiásticas ou de natureza similar;
  • é ilegal criação de taxas sem consentimento do Parlamento;
  • é direito peticionar junto ao Rei
  • é ilegal manter um exército permanente em tempo de paz sem autorização do Parlamento;
  • é ilegal a aplicação de penas sem prévio julgamento;
  • é assegurada imunidade parlamentar para falar, debater e executar procedimentos, dentre outros.

O Act of Settlement, por seu turno, apresentou disposições complementares, determinando a vinculação do Rei à Igreja Anglicana, ratificando a força e a autonomia do Parlamento.

Não se ignora toda a trajetória seguida até o modelo do Common Law adotado hoje pelo Direito norte-americano (meramente de precedentes), podendo-se citar, a título exemplificativo, as discordâncias de Thomas Hobbes e de John Locke (BRANCO e MENDES, 2014:41-2)[4].

Mister, no entanto, assinalar que a formação inicial do Common Law, na Inglaterra, consagrava costumes da sociedade que, aos poucos, foram sendo apreciados e submetidos à avaliação dos juízes na cognição do caso concreto. Costumes que foram gradativamente sendo substituídos por um conjunto de regras materiais e processuais definidas pelas Cortes Reais.

Não restam dúvidas, portanto, de que o caminho percorrido até a Revolução Gloriosa, apesar de marcado pela inevitável sucessão e conflitos, foi de suma importância para o estabelecimento do Common Law, ainda que com roupagem diferente da pretensão e motivação inicial, mas que, certamente, lançou as primeiras sementes do constitucionalismo.

E hoje? O que mudará (ou não), em matéria de direitos humanos, de garantias fundamentais, de liberdade, com a postura, mais uma vez, diferenciada e, em tese, adotada pelo Reino Unido? Será um novo modelo? Uma nova Revolução?


REFERÊNCIAS

BONAVIDES, P. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 29-62

BRANCO, P. G. G.; MENDES, G. F. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

DRUMMOND, P. H.; CROCETTI, P. S. Formação histórica, aspectos do desenvolvimento e perspectivas de convergência das tradições de Common Law e de Civil Law. In A Força dos Precedentes. Org. Luiz Guilherme Marinoni. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012, 632p.

F. T. PLUCKNETT, THEODORE. A Concise History of the Common Law. Chapters 3 and 7, pages 20 a 26 e 48 a 64.

LOMAS, R. A. M. T. Historia de la Constitucion Inglesa durante la edad media. In Revista Jurídica Argentina La Ley. Buenos Aires: La Ley, Tomo 23, 1941, p. 101-5.

PÁDUA, I. A . V. P. Breves noções de Common Law e Equity no Direito inglês, segundo René David. In Revista Jurídica da Universidade de Franca. Franca, 2005, p. 145.

REIS, P. M. A supremacia constitucional do modelo inglês e sua repercussão na colônia americana. Revista ESMAPE v. 6, nº 13, 2001, p. 370.


Texto baseado em pesquisa elaborada em colaboração com André Moura.


NOTAS

[1] Dados históricos extraídos de F. T. PLUCKNETT, THEODORE. A Concise History of the Common Law. Chapters 3 and 7, pages 20 a 26 e 48 a 64.

[2] “Originalmente o direito aplicado nas cortes reais era público e valia para todos (common law), diferente dos costumes locais que as jurisdições tradicionais aplicavam. Eram portanto, as cortes reais, jurisdições de exceção, porque só se ocupavam das grandes causas e dos grandes personagens (questões referentes às finanças reais, com a propriedade imobiliária e a posse de imóveis; graves questões criminais que se relacionavam com a paz do reino). Só depois, gradativamente, passaram as cortes reais também a decidir situações de direito privado, tornando-se ‘jurisdições de direito comum’, devido aos lucros que a administração judicial proporcionava (séc. XIX), gerando o enfraquecimento das jurisdições municipais, comerciais e eclesiásticas” (PÁDUA, I. A. V. P. Breves noções de Common Law e Equity no Direito inglês, segundo René David. In Revista Jurídica da Universidade de Franca. Franca, 2005, p. 145).

[3] DRUMMOND e CROCETTI, em estudo referente à formação histórica do Common Law, explicam em que consistiu a interferência da jurisdição da Equity e até que ponto houve, ainda que temporariamente, o seu esvaziamento: “A rigidez do sistema do common law, que muitas vezes dava soluções que aos envolvidos não parecia satisfatória, acabou por fazer com que determinados casos fossem submetidos diretamente ao rei, através de um recurso ‘à prerrogativa real’, cuja ocorrência passou a ser cada vez mais comum. Esse recurso era normalmente manejado junto ao Chanceler, que transmitia ao rei. O Chanceler paulatinamente foi se tornando um juiz autônomo, sendo que as suas decisões eram tomadas inicialmente em consideração pela ‘equidade do caso particular’, dando lugar à aplicação de doutrinas equitativas. Por força da paulatina ampliação da atuação do Chanceler, que se valia majoritariamente do direito romano e do direito canônico, ‘o direito inglês no século XVI quase reuniu-se à família dos direitos do Continente europeu’, justamente pelo triunfo da jurisdição da equidade do Chanceler. No entanto, a resistência dos juristas acabou pesando, porque para a defesa da sua posição e da sua obra, os tribunais do common law e a jurisdição do Chanceler passaram a subsistir paralelamente” (Obra já citada, p. 56).

[4] Para Hobbes, o poder tem uma origem. Os indivíduos, para fugir dos riscos e das angústias do estado de natureza, decidiram superá-lo. A sua doutrina se afasta do pensamento de Bodin neste passo e assume feitio contratualista. Os indivíduos, para salvar suas vidas e preservar os seus bens, teriam instituído um poder soberano comum, que lhes deveria proteger a existência e o desfrute da propriedade e a quem entregariam os seus amplos direitos, de que dispunham no estado de natureza. (…) Para Locke, no estado de natureza, os indivíduos já eram capazes de instituir a propriedade, segundo os ditames da lei natural, mas, para preservá-la, não poderiam prescindir de estabelecer uma sociedade política. Esta tem em mira ‘o desfrute da propriedade em paz e segurança’. O poder, então, haveria de ser exercido para o bem geral da comunidade, buscando garantir condições propícias à paz e ao gozo da propriedade. Na sociedade política tornam-se viáveis instituições incogitáveis no estado de natureza, tal como o legislador razoável, o juiz imparcial e o poder executivo, garantidor, na prática, das decisões tomadas. Segundo Locke, o legislador não cria direitos, mas aperfeiçoa a sua tutela, no suposto de que esses direitos preexistem ao Estado; daí o Poder Público não poder afetar arbitrariamente a vida e a propriedade dos indivíduos” (BRANCO, P. G. G.; MENDES, G. F. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 41-2).

_Colunistas-Vilvana

Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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