O que é encarceramento em massa?
O que é encarceramento em massa?
O livro “O que é encarceramento em massa’’, escrito pela pesquisadora e ativista Juliana Borges, faz parte da série Feminismos Plurais, coordenado pela filósofa Djamila Ribeiro, tendo como objetivo introduzir questões relativas ao sistema de justiça criminal no Estado brasileiro, a partir de uma perspectiva antirracista, voltada ao abolicionismo Penal e com ênfase para as intersecções entre raça, classe e gênero.
A obra de Juliana Borges se inicia com a exposição das origens do sistema escravocrata e os seus efeitos na realidade brasileira. Conforme a autora, esse contexto tem sido responsável pela manutenção da desigualdade social e do racismo estrutural bem como está vinculado a atuação do Judiciário a partir da lógica punitiva para a população negra. Segundo Borges (2018, p. 37),
abolida a escravidão no país, como prática legalizada de hierarquização racial e social, outros foram os mecanismos e aparatos que se constituíram e se reorganizaram […] como forma de garantir controle social, tendo como foco os grupos subalternizados estruturalmente.
Quando se fala em encarceramento em massa, a autora se refere ao encarceramento massivo dos negros. A taxa de negros comparada à taxa de brancos aprisionados tem crescido constantemente nas últimas décadas.
No Brasil, diversos fatores podem ter influenciado diretamente neste processo, dentre eles a ampliação das políticas neoliberais, o aumento do controle punitivo, ênfase na guerra às drogas e a criminalização da pobreza. Para Borges (2018, p. 16),
O sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por esta estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquia racial.
Dialogando com Alexander (2018, p. 9):
O caráter do Sistema de Justiça Penal é outro. Não se trata da prevenção e punição do crime, mas sim da gestão e do controle dos despossuídos. […] encarceramento em massa tende a ser categorizado como problema de justiça criminal oposto à justiça racial ou problemas de direitos civis (ou crise).
Tanto para Juliana Borges (2018) quanto para Michelle Alexander (2018), a “guerra às drogas” é elemento central para o modo capitalista produzir desigualdades. Nesse sentido, a atuação do Estado neoliberal hoje pode servir a toda forma de opressão pública ou privada enquanto instrumento de acomodação social e disciplina para o controle punitivo na contramão de práticas processuais democráticas e éticas.
Com os dados fornecidos nos últimos anos, é possível afirmar que a população carcerária é majoritariamente formada por homens, jovens e negros. O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de países que mais encarceram no mundo, seguindo os passos dos Estados Unidos. Segundo Borges (2018, P. 83), o perfil da população selecionada pelo sistema prisional brasileiro é bem específico.
56% dos acusados em varas criminais são negros, enquanto que em juizados especiais que analisam casos menos graves, este número inverte tendo maioria branca (52,6%).
Identifica-se, sob a marcas do neoliberalismo, além do desmonte das políticas sociais, a ascensão de discursos de caráter conservador que trazem a lógica da culpabilização e, por conseguinte, a defesa de um viés punitivo. Segundo Borges (2018, p. 30)
Nosso pensamento é condicionado a pensar as prisões como algo inevitável para quaisquer transgressões convencionadas socialmente. Ou seja, a punição já foi naturalizada no imaginário social.
Diante desta realidade, questiona (2018, p. 30)
as prisões estão sendo espaços de real ressocialização como se propõe?
Nesse sentido, a autora pontua que o crescimento massivo de presos não é uma medida suficiente para conter a violência. Ao contrário, a superlotação, a violação de direitos, a falta de atividades propícias à ressocialização favorecem a questão da reincidência, não sendo solução para problemas políticos e sociais.
Em relação ao aumento do encarceramento feminino, Borges expõe que as mulheres encarceradas sofrem uma dupla invisibilidade, tanto pela invisibilidade da prisão, quanto pelo fato de serem mulheres. Nesse sentido, ressalta a importância de pensar a categoria gênero de forma interseccional nas discussões sobre o sistema de justiça criminal isso porque
68% das mulheres encarceradas são negras, e 3 em cada 10 não tiveram julgamento, consideradas presas provisórias. 50% não concluíram o ensino fundamental e 50% são jovens, sendo esta média de mulheres em torno de 20 anos. (p. 91).
A constituição de 1988 assegurou no aspecto formal direitos, contudo, podemos observar que os direitos humanos estão em permanente disputa e muitas vezes as instituições fortalecem discursos hegemônicos, coloniais, sexistas, racistas e a partir daí vemos a dificuldades das mulheres negras acessar as políticas públicas e ter seus direitos fundamentais garantidos. Assim, no Brasil o racismo pode ser evidenciado de diversas formas bem como os processos contínuos e descontínuos na conquista dos direitos sociais e democráticos.
Desse modo, a leitura de “O que é encarceramento em massa?” nos fornece a compreensão de que a população prisional cresce de forma acelerada no Estado brasileiro, tendo como base um recorte classista e racista, mas as iniciativas que fortalecem as penas alternativas, por exemplo, ainda são incipientes. Falta também uma articulação conjunta dos poderes públicos para a implementação de políticas de segurança que sejam efetivas e consigam reduzir os índices de violência.
Precisamos repensar o sistema de justiça para que se organize não pela vingança e punição, mas, principalmente, pela restauração e reconciliação (p. 118).
Portanto, esse cenário demonstra que a violência, enquanto expressão da questão social deve, portanto, ser enfrentada por diversos campos. O caminho não é ampliar os mecanismos de punição em nome de um eficientismo penal. O direito penal, por tudo que foi dito, deve implicar numa interpretação que tenha em vista a redução de danos e, por sua vez contribua para à construção de um sistema criminal mais justo.
REFERÊNCIAS
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.
BORGES, Juliana. O que é: encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2018.
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