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Precisamos falar de ensino jurídico: proposta de análise de método

Precisamos falar de ensino jurídico: proposta de análise de método

Nosso país enfrenta uma das piores crises políticas e jurídicas de sua história. Um número considerável de pensadores aponta deficiências no ensino jurídico como um dos importantes fatores por trás deste cenário. Surge assim a necessidade de considerarmos esta possibilidade e verificarmos o que pode ser feito para reverter este quadro.

Pretendo aqui descrever minha percepção acerca de cinco métodos de ensino comuns nas instituições de ensino de direito em nosso país. O objetivo é verificar qual delas se mostra mais apta a operar uma melhora na formação jurídica dos alunos. Reconhece-se que o problema não é somente de método, mas entendo que este seja um bom lugar por onde podemos começar uma pesquisa séria sobre as possíveis transformações necessárias.

A análise dos métodos não é exaustiva e a nomenclatura que criei não tem a pretensão de ser dogmaticamente reconhecida. Apenas teço aqui comentários breves acerca do que pode ser observado e daquilo em que podemos nos apoiar para pensar um progresso no ensino do direito. Importante destacar que os métodos abaixo alistados não se excluem, nem são praticados com autonomia, sobrepondo-se em diferentes graus de extensão.

1. Tópico-problemático-normativo: este método é mais comum em países com tradição na Common Law. Estrutura-se a partir da análise de julgados, procurando inferir destes normas gerais, com base na problematização das questões abordadas e argumentos utilizados para sua solução. Possui o mérito de garantir boa margem de segurança. Estima pela praticidade e produz juristas com elevada habilidade na concretização de soluções tradicionalmente aceitas pelo sistema jurídico vigente. Tem como possível aspecto negativo o “engessamento” da capacidade criativa do direito, diante da complexidade das relações contemporâneas e dos desafios oriundos do consumo em massa e da “sociedade de risco”.

2. Tópico-dogmático-sistêmico: semelhante ao anterior, também parte da análise de casos já experimentados pelos tribunais. Porém, diferencia-se por trabalhar com igual esforço sobre casos hipotéticos e por procurar produzir não apenas um vasto conhecimento jurisprudencial, prático-concretizador, mas também um sistema de “dogmas” - conceitos estruturantes que devem ser assimilados pelo estudante afim de manejar a legislação e a argumentação jurídica.

3. Normativo-dogmático-estruturante: em contraste com os modelos anteriores, parte da análise das normas jurídicas vigentes, utilizando-se de dedução afim de obter os “dogmas”, em geral trabalhados por doutrinadores que atingem o status acadêmico necessário para permitir que suas lições tenham impacto sobre o ensino do direito e sobre a jurisprudência. Forma-se neste modelo uma estrutura de fontes do direito em que as normas positivadas e a interpretação destas por autores de renome embasa toda a argumentação utilizada pelos juristas (advogados ou magistrados). Este modelo é amplamente utilizado em nosso país.

4. Normativo-principiológico-hermenêutico: Desenvolvimento aprimorado do modelo anterior. Parte das normas jurídicas vigentes e também procura elaborar uma estrutura dogmática, porém de modo mais aberto. Leva em conta estudos da avançados de teoria do direito, da filosofia da linguagem e da hermenêutica jurídica. Procura encontrar princípios fundantes do sistema jurídico operante, em geral alicerçados na Constituição Federal. Também é utilizado em larga escala nas instituições de ensino em nosso país e na bibliografia de melhor qualidade. Porém, sofre hoje o impacto deletério do método a seguir analisado.

5. Esquemático-manualesco: Degeneração dos quatro modelos anteriores. Dá primazia a memorização de enunciados, sejam eles normas, doutrina ou princípios. Busca a “facilitação” de obras com profunda densidade filosófica e sociológica. Dá extremado valor à praticidade, com o uso viciado de esquemas com alto grau de cognição imediata. Lança mão de técnicas de ensino comuns em cursos pré-vestibular, em que um amplo conteúdo precisa ser retido com o propósito único de ser repetido em exames padronizados. Não se preocupa em estimular a reflexão crítica sobre o que é ensinado, bastando ao aluno a capacidade de retenção e de associação conceito - autor. Torna-se cada vez mais comum em nossos país devido a pestilenta busca por cargos públicos. Acarreta a proliferação de carreiras voltadas para o atendimento deste mercado, com livros (manuais) próprios e professores com preparo típico para estas necessidades (em geral com elevado apelo popular, carisma, habilidade retórica e simplificação linguística). Cabe destacar que estes elementos se retroalimentam, não sendo possível responsabilizar (inteiramente) os professores que atendem esta “fatia de mercado” pelo aparecimento e ampliação deste método.

De tudo o que foi apontado, acredito que o maior grau de aptidão para formar o tipo de juristas que o país precisa para superar o triste estágio em que se encontra, levando em conta nossa tradição e sistema jurídico, pode ser alcançado pela conjugação dos métodos 1 e 4. Novas formas de abordagem podem ser aventadas. Métodos inovadores podem ser vislumbrados.

O que não pode ser perpetuado é a prevalência do uso do método de número 5. Conforme mencionado, seu aparecimento e disseminação não é obra de uns poucos mercenários oportunistas. Há um sistema que alimenta esta opção e é este que precisa ser modificado.

As instituições de ensino precisam tomar uma posição corajosa neste sentido. Acredito que seja mais factível pensar nisso ocorrendo, em nosso tempo, em instituições de ensino privado. Isto pode soar surpreendente, uma vez que as instituições federais possuem um histórico de luta admirável. As privadas são pautadas pelo natural propósito de obtenção de lucro, o que as faz coerentemente buscar oferecer o que o mercado está consumindo.

Porém, por diversos motivos que aqui não serão minuciosamente relacionados, o potencial de transformação das universidades federais encontra-se hoje, em muitos casos, anestesiado. Posso estar errado. Os motivos que levam a esta conclusão têm que ver com aspectos de dotação orçamentária e outros comprometimentos político-partidários.

As instituições privadas podem, por outro lado, desprendidas (em algum grau) de conexões políticas mais rígidas, optar por utilizar o espaço acadêmico para produzir um sistema de estudo mais livre, mais crítico, mais voltado a valorização das disciplinas propedêuticas e da formação abrangente de seus alunos.

O diagnóstico acima é particular e pode se mostrar equivocado em alguns pontos. Ainda assim, precisamos discutir estas questões. O ensino jurídico parece ser a frente de resistência e mudança com melhor capacidade de proporcionar luz em meio a esta escuridão em que estamos inseridos. Fiat lux!

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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