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Entenda o artigo 316, parágrafo único, do CPP

Entenda o artigo 316, parágrafo único, do CPP

Por Ivan Serpa Carvalho Neto e Gilney Batista de Melo

Recentemente, uma decisão liminar (provisória) que causou muita polêmica foi a proferida nos autos do Habeas Corpus nº 191.836/SP, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, em que num caso concreto a prisão preventiva de um cidadão não havia sido reavaliada dentro do prazo legal de 90 dias pelo juiz que determinou a prisão cautelar daquele indivíduo, conforme determina o art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, alterado pela “lei anticrime”, Lei 13.964/19.

Atrelada à polêmica causada pela mídia sensacionalista, dentro do ambiente punitivista, num quadro político caótico e consequencialista em que o país vem vivenciando e aprofundando, vale ressaltar alguns pontos acerca do caso: o cidadão, contra a qual recaia a prisão cautelar há muito tempo, era tido como da alta hierarquia de uma organização criminosa conhecida no Brasil e, ao que parece, era realmente um traficante conhecidíssimo, o que causou natural indignação na sociedade e, até mesmo entre alguns profissionais da área, quando foi noticiado que o mencionado acusado havia sido posto em liberdade provisória.

Uma das indagações comumente ouvidas foram: “Mas como fizeram isso com uma pessoa dessa periculosidade? Teria que ficar preso! ”; “A justiça nesse país não funciona! ”; “As leis devem ser mudadas! ”; entre outros cotejos que não condizem com a situação jurídica numa análise técnica e perfunctória.

Assim, as notícias pregando a alteração do parágrafo único, do artigo 316, do Código de Processo Penal, surgiram como forma de expressar o imediato inconformismo acerca da referida decisão liminar e da insatisfação da lei aplicada ao caso, sugerindo, os meios massivos de comunicação, a sua alteração com vistas a impedir a malfadada impunidade – o que não está errado sob o aspecto senso comum, analisado sem o aspecto técnico, politizando à celeuma e olhando sob âmago de compreensão equivocado, ou seja, inflamam a sociedade em não concordar e achar que algo deve ser mudado, afinal, estamos em uma formal democracia (ou pelo menos é o que queremos acreditar).

De forma didática, o foco simples do texto aqui é dar um direcionamento para as pessoas que “não entendem” (ou foram levadas a não entender) a sistemática desse art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal e o sistema de justiça criminal brasileiro. Pois bem, de forma introdutória, o processo penal não tem o condão de punir a todo custo aquele que eventualmente é submetido a um processo criminal, pelo contrário, é um procedimento em que se deve respeito ao devido processo legal, como também às garantias processuais individuais de toda e qualquer pessoa (integrantes de organização criminosa, política, empresária, zé da esquina) e, diferentemente de todas as outras áreas da vida, aqui, no processo penal, a liberdade é o que se está em jogo, de culpados e de muitos inocentes, a todo instante, e, por isso ganha uma proteção maior (ou pelo menos deveria ganhar).

É um direito, a princípio, indisponível para o alheio, ou seja, um direito que não está à disposição de qualquer pessoa para fazer o que bem entender com a liberdade do outro. Assim, a justiça criminal brasileira, trabalha a todo instante com um direito indisponível (liberdade), isto significa, um direito que não está à disposição dela (justiça) para fazer o que bem entender com a liberdade do outro (cidadão) e que portanto deve observar o sistema jurídico político estabelecido pela Constituição Federal de 1988 à época e, o Código de Processo Penal, deve estar ou ser relido à sua sintonia de valores e alcance, sendo o art. 316, parágrafo único, corretíssimo e adequado ao caso.

Diferentemente do campo do processo civil, que muitas vezes o que está em jogo é ter ou não direito sobre algo patrimonial, sobre o objeto do processo, como por exemplo, por uma rescisão contratual, ou qualquer outra situação que se possa aqui encaixar. Como explica Carnelutti (LOPES JR., 2020, p. 67),  “o processo civil é, nove de cada dez vezes, um processo de sujeitos que “TÊM”, e, quando um dos dois não tem, aspira muito “TER”. É o processo do “MEU” e do “TEU”, o que está em jogo é a propriedade, é uma relação coisificada, diria Simmel”. Assim, é errado pensar em um processo penal em que “eu TENHO a sua liberdade” ou “a SUA liberdade ME PERTENCE” ou ainda “eu TENHO DIREITO sobre a SUA LIBERDADE”

Para fechar o raciocínio dessa parte introdutória, no processo penal há uma inversão, há um protecionismo do indivíduo-cidadão submetido ao processo penal, em que se retira a ideia da repreensão pela via vingança privada, via de regra atiçada pelo clamor social, para inserir a ideia de um sistema de garantias processuais individuais, onde, o Estado, assume essa função e tem o dever de cumprir a citada repreensão, pois, como dito anteriormente, se vive – ou assim esperamos viver – sob um Estado Democrático de Direitos, ou, como na primeira hipótese (vingança privada), voltaríamos então ao Código de Hamurabi em que se alguém quebrar o osso de alguém, que esse alguém que quebrou tenha seu osso quebrado também e assim por diante (HARARI, Sapiens, 2014. p. 149).

Portanto, o art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, alterado pela “lei anticrime”, tem o objetivo de reavaliar periodicamente a prisão preventiva e evitar um prolongamento imotivado da prisão, pois, o que se vê nas decisões proferidas dentro da justiça criminal é a decretação da prisão preventiva de forma automatizada que, após a privação da liberdade, simplesmente “se esquece” da pessoa que fica presa cautelarmente sem que haja depois uma análise da necessidade ou não dessa privação da liberdade, deixando o indivíduo-cidadão preso cautelarmente durantes anos, muitas vezes aguardando o julgamento do processo ou o seu término, frisa-se, em muitos casos tendo ao final uma pena não privativa de liberdade.

Por esse motivo é que o Artigo 316, parágrafo do CPP, prevê que

decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Em que pese algumas divergências quanto ao agir de ofício por parte do juiz num sistema processual constitucional, a ideia central aqui é destacar que a decisão do Ministro Marco Aurélio se baseou no sistema de garantias individuais da Constituição Federal de 1988 e, especificamente no cumprimento correto e exato do art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal.

Aos leigos, imaginemos a seguinte situação que foi objeto da decisão: O juiz X decreta uma prisão preventiva contra alguém. Essa pessoa fica presa cautelarmente. Passados os 90 dias dessa prisão, o juiz não faz nada e deixa a pessoa presa sem nenhum novo motivo. Os advogados então, recorrem dessa inércia do juiz X para um outro juiz Y (ministro Marco Aurélio). O juiz Y só tem uma saída que é não deixar essa pessoa presa, porque passou os 90 dias que a lei prevê.

Dando nome aos bois, de acordo com a lei aqui analisada, o órgão emissor da decisão é o juiz X, que deveria revisar a prisão antes dos 90 dias e não o fez, logo, manter a pessoa presa depois disso é ilegal. Ao juiz Y, não caberia revisar a manutenção da prisão porque não foi ele quem decretou a prisão preventiva incialmente. Logo, o Juiz Y, apenas seguiu a lei e mais nada. Simples, não é? Pois é. Seguir a lei hoje é revolucionário (e não deveria ser visto assim), é só notar a repercussão que teve. Achar que o citado traficante deve ficar preso, é normal e correto, o que não pode é haver o uso incorreto, equivocado e aproveitador do caso.

A lei é ótima e impõe limite ao poder judiciário, como em todo país democrático. O art. 316, parágrafo único do Código de Processo Penal determina apenas que em todos os casos (sem exceção) que há prisão preventiva decretada o juiz deve aferir a necessidade (e demonstrar) da manutenção dessa prisão, se não o fizer a prisão se torna ilegal. E ninguém deve ser mantido preso ilegalmente! Ninguém deve ser abandonado preso preventivamente, como ocorre em regra infelizmente na realidade judicial brasileira.

A liberdade individual é o que temos de mais importante, como direito fundamental e a história comprova isso, e por isso o juiz deve demonstrar concretamente em todos os casos o motivo pelo qual pessoa deve estar presa. Portanto, a inércia, a desídia e o descaso do Poder Judiciário, em especial dos juízes de primeiro grau, não têm o condão de fazer que a lei não seja cumprida, e não podemos ser consequencialistas e legitimar isso.

A justiça criminal não funciona assim – ou pelo menos não deveria funcionar – atendendo de forma instantânea e imediatista à um anseio social puramente punitivista. Lembra que no processo penal não deve prevalecer a vingança privada? E que a pessoa recebe tratamento com vistas às garantias individuais?

Mas indo além, ao invés de se chatear com a decisão que libertou o traficante, por que não se chatear com a desídia de Estado? Do Ministério Público que não fez um novo pedido para manutenção da prisão ou do juiz X, ainda que de ofício, mas só para não perder o cerne da discussão?

Veja, se o acusado é de alta periculosidade, situação que deve ser devidamente demonstrada nos autos, e, sendo esse motivo para a manutenção da prisão preventiva, é dever do promotor ou o juiz, em cumprimento à legislação, revise a necessidade de manutenção da prisão preventiva antes dos 90 dias, evitando-se a soltura do acusado. Por que não foi obedecida a lei por parte do promotor ou do juiz, no caso? Aliás, vale lembrar que estamos falando de prisão preventiva e não de prisão em razão de uma condenação.

O problema não é a lei. No caso específico (Artigo 316, parágrafo único do CPP), mas sim um sistema de justiça criminal falido e esquecido, atrelado a uma cultura punitivista, à Juízes e Juízas que não querem demonstrar seu trabalho fundamentado no ordenamento jurídico brasileiro, e, de uma sociedade que quer a todo o custo uma resposta rápida do Estado Poder, sem perceber que o processo penal em si tem o seu próprio tempo, e, o curso deste tempo deve respeito às garantias formais e materiais, as quais não se deve abrir mão.

Como bem observa Aury Lopes Júnior, em uma de suas obras, o processo penal está em crise,

no Brasil o cenário é ainda mais grave, pois, se criou um ciclo vicioso, autofágico até. Temos uma panpenalização (banalização do direito penal), pois acreditamos que o direito penal é a tábua de salvação para todos os males que afligem esta nova democracia com uma grave e insuperável desigualdade social. Com “tudo” é direito penal, “quase tudo” acaba virando processo penal, com um entulhamento descomunal das varas criminais e tribunais. Não existe sistema de justiça que funcione nesse cenário e o nosso é um exemplo claro disso(…).

Mas voltando ao assunto aqui abordado, o que se quer dizer é que o problema é mais profundo do que se imagina. Não há nada de errado em seguir a lei, o problema é o contrário, é NÃO SEGUIR A LEI (por desídia ou qualquer outro motivo) e querer concertar com decisões mirabolantes, como a que assistimos nos últimos dias com a cassação da decisão do Ministro Marco Aurélio pelo Ministro Fux e pela manutenção da prisão, por maioria dos votos, pelo STF.

Fazendo um paralelo sobre o assunto discutido aqui, em termos de seguir/aplicar a lei, podemos citar a Lei de Execução Penal, pouco aplicada, ou melhor, seguida de fato na realidade e olha o caos que se encontra o sistema carcerário como um todo.

Novamente, seria tão simples seguir/aplicar a Lei de Execução Penal, mas tão revolucionário ao mesmo tempo.

Atreve-se a dizer nessa época de eleição, se algum candidato, além das propostas sobre a educação, saúde, moradia, também propusesse a melhoria do sistema de política criminal, dificilmente seria eleito.

Enfim, voltando ao cerne da questão, se continuarmos a negar essa realidade, e mormente a Constituição Federal de 1988 com seus direitos e garantias, estabelecidas nos valores lá expostos, nunca sairemos melhores desse estado de coisas irracional e certamente não haverá justiça alguma na nossa realidade no futuro. Segurança jurídica está em cumprir as determinações legais e constitucionais.

Assim, o único a acertar foi o eminente Ministro Marco Aurélio e teve muita coragem, de cumprir a sua função de ministro guardião dos direitos individuais estabelecidos na Constituição Federal de 1988, que é ser contra majoritário. Se a situação jurídica é ilegal, deve-se aplicar a lei e a lei que tornará a situação legal, independentemente da sua consequência.

Todavia, concordamos plenamente que a consequente soltura do caso concreto vem de erros (desídia e descaso de agentes pagos pelo Estado que não fizeram seu trabalho), mas distintamente ocorrem erros na grande parcela do contingente de presos de nosso sistema prisional (frise-se, pobres, negros ou periféricos, abandonados, presos ilegalmente, por crimes que nem pena de prisão, muitas vezes,  daria), que não é de soltá-los, mas sim de mantê-los presos ilegalmente.

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