Entre ficção e realidade: 1984 de Orwell e a ditadura civil-militar no Brasil
Entre ficção e realidade: 1984 de Orwell e a ditadura civil-militar no Brasil
Nota introdutória: Na coluna da Comissão de Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais, apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática “Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as ‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão. O texto da vez, formulado pela colega Marcia Letícia Gomes, foi feito com base no artigo “O Limiar entre Ficção e Realidade: “1984” de Orwell e os depoimentos da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora”, de Giulia Alves Fardin e Rafael Carrano Lelis – publicado nos anais do IV CIDIL. Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka – do Canal Ciências Criminais)
Como uma vez disse José Saramago “de fingimentos de verdade e de verdade de fingimentos se fazem, pois, as histórias”. O escritor evocava, em uma frase curta e simples, um tema bastante amplo, qual seja, o das fronteiras que separam ficção e realidade, se é que elas existem.
Muitos filósofos e teóricos da literatura já se debruçaram sobre o tema, dentre eles Paul Ricoeur (1997) que propõe que o pacto do leitor com a obra é diferente, podendo haver um pacto de verdade com as histórias reais e um pacto de invenção, de criatividade quando se trata de narrativas ficcionais. É o filósofo quem usa os termos “representância” para as narrativas históricas e “significância” para os textos literários.
Uma categoria de narrativas, no entanto, desafia as discussões já empreendidas a respeito do tema, são as narrativas distópicas. Não porque, em sua estrutura, apresentem diferenças substanciais em relação a outras narrativas mas, porque, em determinados cenários, essas construções ficcionais parecem antecipar, adivinhar um futuro, um futuro distópico.
As fronteiras difusas entre ficção e realidade somadas às narrativas distópicas permeiam as reflexões propostas por Giulia Alves Fardim e Rafael Carrano Lelis em artigo intitulado “O limiar entre ficção e realidade: 1984 de Orwell e os depoimentos da comissão municipal da verdade de Juiz de Fora” no qual os autores empreendem uma discussão com base na obra ficcional de George Orwell 1984 e os depoimentos obtidos por uma comissão da verdade e o fazem em três frentes: atuação dos órgãos de justiça; violação aos direitos humanos e fundamentais; instrumentos de controle da sociedade.
Poderia a sociedade comandada pelo Partido em 1984 ser associada à sociedade brasileira no período ditatorial? A violência, os desaparecimentos, a aparência de legalidade de que se revestiam os atos, fosse pela ausência de leis fosse pela flexibilidade destas para atender a determinados interesses, aparecem nos dois cenários – o real e o ficcional.
Em tempos de tantas falas acerca de ideologia, a ameaça que vem sendo atribuída à educação e aos educadores neste campo, estaríamos, assim como na ficção, sendo ameaçados pela “Polícia das Ideias”?
A tênue linha entre ficção e realidade mostra-se ainda mais flexível na argumentação do artigo de tal forma que se misturam os casos ocorridos em Juiz de Fora e os que são narrados em 1984, atestando os pontos de discussão anunciados no início do texto. Ao mesmo tempo em que os documentos reunidos sinalizam um lugar de memória, um lembrete dos fatos ocorridos e a importância de que não sejam esquecidos; a obra literária, dentro da liberdade criativa da ficção, já antevia a possibilidade de tais ocorrências.
Elementos como perseguição, tortura, assassinatos e desaparecimentos compõem o cenário brasileiro no período de ditadura civil-militar e também compõem o espaço ficcional criado por Orwell em 1984, como sinalizam Fardim e Lelis.
Ademais, o instrumento de vigilância utilizado na obra era a teletela que tanto transmitia quanto gravava, o que oportuniza a discussão a respeito de que aparatos tecnológicos permitem a vigilância na atualidade, a exemplo de internet, computadores, celulares e a questão: seria a teletela uma antecipação ficcional do que seria criado?
O exercício realizado por Fardim e Lelis pode ser compreendido numa perspectiva de “Direito na literatura”, pensando a partir das categorias propostas por François Ost (2009) em “Contar a lei”, quais sejam: o direito da literatura, o direito como literatura e o direito na literatura.
As discussões realizadas no artigo permitem ver o direito na literatura, as violações a direitos que são narradas na ficção associadas aos depoimentos referentes ao período de ditadura civil-militar vivenciado no Brasil e que narram algo semelhante ao anunciado ficcionalmente.
Mais que conclusões, a leitura do artigo referenciado nos deixa com inquietações e com um repertório de possibilidades que permitem perceber nas relações entre direito e literatura uma ampliação no olhar, pensando não apenas as fronteiras tênues entre ficção e realidade mas, para além disso, as múltiplas possibilidades oferecidas pela literatura para pensarmos o direito.
REFERÊNCIAS
FARDIM, Giulia Alves; LELIS, Rafael Carrano. O limiar entre ficção e realidade: 1984 de Orwell e os depoimentos da comissão municipal da verdade de Juiz de Fora. Anais do IV CIDIL – Censura, democracia e direitos humanos. 2006. Disponível aqui. Acesso em 18-2-2019 às 15h50min.
OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2009.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol. 3. Campinas: Papirus, 1997.
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