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Entre textos legais que protegem a moral e juízos ou julgamentos morais

Por Diógenes V. Hassan Ribeiro

A Constituição Federal contém, em seu texto, pelo menos 12 menções à moral ou à moralidade. A primeira está no art. 5º, inciso V, que assegura “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.  Também é assegurado o direito à indenização por dano material ou moral por violação à intimidade ou proteção da vida privada, no inciso X do mesmo artigo. O inciso XLIX prevê o respeito à integridade física e moral do preso e, ainda, no artigo 5º, há previsão do princípio da moralidade administrativa, no inciso LXXIII, que anuncia o direito dos cidadãos ao ajuizamento da ação popular. Há outras menções a essa expressão na Constituição.

Exemplo de legislação infraconstitucional, que aborda a moral, é a Lei nº 11.340/2006, popularmente chamada de Lei Maria da Penha. No art. 5º consta que “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. O art. 7º esclarece que violência moral deve ser “entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”.

Há outros estatutos legais que também protegem uma certa moralidade.

Voltando à Lei nº 11.340/2006, ela teve como razões e também como objetivos a mudança de uma cultura, singularmente machista, que carregava uma certa moralidade, no seu aspecto negativo, no seu sentido de “costume”. Era comum a ascendência, desde há muitos séculos, masculina sobre a feminina, cultura esta que era, aliás, estimulada pelas próprias mulheres, que eram educadas conforme esse “costume”.

Nessa “moralidade”, em seu aspecto negativo, a mulher era “propriedade” do homem e, sendo assim, deveria viver conforme às vontades masculinas, desde o pai, na família, até o marido/“proprietário”, no casamento. Somente a partir de meados do Século XX é que a mulher iniciou uma conquista de espaço maior na comunidade, inclusive teve acesso a direitos políticos. No Brasil com o Código Eleitoral de 1932, o que foi chancelado depois com a Constituição de 1934, a mulher passou, expressa e declaradamente, a ter direito a voto e de ser eleita.

Embora esse avanço no campo político, na vida familiar a mulher continuou a ser subjugada pelo “poder” masculino. E, de fato, é vergonhoso ter de existir uma lei, editada em pleno terceiro milênio, no Brasil, que impõe a necessária proteção de gênero, na violência doméstica.

Assim, existem – e é necessário que existam – leis que protegem uma certa moralidade, no seu aspecto positivo, como, no exemplo da Lei nº 11.340/2006, que intenta mudar uma cultura centenária extremamente odiosa. Entretanto, mulheres continuam sendo agredidas, violentadas e mortas, pela sua condição de mulheres.

Evidentemente que houve leis nefastas que protegem uma certa moralidade – a dizer “contrária aos bons costumes” – deletérias. Serve de exemplo o antigo art. 240 do Código Penal, que puni o adultério e, nesse caso, certamente, somente podiam ser compreendidas, eventualmente, as “criminosas” mulheres, porque homens não havia para serem punidos, desde sempre. Esse artigo somente foi revogado em 2005.

No outro polo da questão estão os julgamentos ou juízos morais. O direito não pode tolerar julgamentos morais ou juízos morais sem base legal e, havendo fundamentação legal, esta se basta por si só, não cabendo outras considerações.

Pretende-se dizer com isso que no Estado Constitucional e Democrático de Direito não há espaço para guardiões da moral ou da moralidade. A moral ou moralidade que a lei protege é uma moral objetiva. No direito administrativo, por exemplo, o princípio da moralidade tem conexão com o princípio da impessoalidade especialmente no caso da vedação do nepotismo. Há uma violação à finalidade da gestão da coisa pública, que deve ser impessoal.

Então, se não há espaço para guardiões da moral ou da moralidade, somente deve haver espaço para guardiões da lei e da sua adequada aplicação.

A lei deve proteger a moral ou a moralidade, no seu aspecto positivo. Por isso, ao aplicador da lei não há possibilidade de ser moralista e ir além da legislação.

O Ministro Eros Grau, em voto proferido no RE 405.386, que teve iniciado seu julgamento em 20 de junho de 2006 e concluído em 26 de fevereiro de 2013, esclareceu bem o que se impõe dizer:

“Deveras o conteúdo desse direito há de ser encontrado no interior do próprio direito, até porque a sua contemplação não pode conduzir a substituição da ética da legalidade por qualquer outra. Vale dizer, não significa a abertura do direito para a introdução, nele, de preceitos morais. O que importa assinalar, ao considerarmos a função do direito positivo, o direito posto pelo Estado, é que este o põe de modo a constituir-se a si próprio, enquanto suprassume a sociedade civil, conferindo concomitantemente a ela a forma que a constitui. Nessa medida, o sistema jurídico tem de recusar a invasão de si próprio por regras estranhas a sua eticidade própria, advindas das várias concepções morais ou religiosas presentes na sociedade civil, ainda que isso não signifique o sacrifício de valorações éticas. Ocorre que a ética do sistema jurídico é a ética da legalidade. E não pode ser outra, senão esta, de modo que a afirmação, pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, do princípio da moralidade o situa, necessariamente, no âmbito desta ética, ética da legalidade, que não pode ser ultrapassado, sob pena de dissolução do próprio sistema.”

“Isso posto, compreenderemos, facilmente, esteja confinado o questionamento da moralidade da administração, nos lindes do desvio de poder ou de finalidade. (…) Permitam-me que eu insista neste ponto: a moralidade da administração somente pode ser concebida por referencia à legalidade.”

Portanto, a lei é o parâmetro/quadro limite para qualquer análise que envolva questões morais, já que, reitero, não existem, no Estado Constitucional e Democrático de Direito, guardiões da moral ou da moralidade, que se ponham como aqueles que expressam “verdades morais coletivas”. Nesse lugar estão, por exemplo, todos os que comungam de posições punitivistas, mesmo que enrustidas, pois expressam moralismos, que até se justificam na cidadania e na opinião pública em geral, não nos gabinetes dos aplicadores da lei.

_Colunistas-Diogenes

Diógenes V. Hassan Ribeiro

Professor e Desembargador

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