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Erro ou dúvida sobre a autoria do crime: quando a Justiça falha

Erro ou dúvida sobre a autoria do crime: quando a Justiça falha

Filme clássico de 1957, com o célebre ator Henry Fonda, roteiro original de Reginald Rose, “Doze homens e uma sentença” (título original: “12 Angry Men”), narra a estória de um time de doze jurados que deve decidir sobre o destino de um jovem acusado de matar o próprio pai. O filme ganhou uma nova versão em 1997, bastante fiel ao original.

O acusado é um jovem porto-riquenho. A nacionalidade do jovem é pouco debatida, mas extremamente importante. Um migrante, morando numa casa miserável, perto de um trem que faz um barulho ensurdecedor. Seu pai é assassinado. Para a polícia, ele é o culpado. Testemunhas teriam ouvido os gritos. Tudo aponta para sua condenação. Nos Estados Unidos, onde se passa a trama, sua condenação implica ainda na pena de morte. Mais que o veredito “culpado ou inocente”, é sua vida que está nas mãos dos doze jurados. O acusado sustenta sua inocência: estaria em um cinema no momento do crime, mas não lembrava que filme assistira.

Dos doze jurados, onze não prestaram nenhuma atenção aos detalhes do julgamento, às contradições do depoimento das testemunhas, detalhes que fazem toda a diferença. Para esses onze jurados, o acusado cometeu o crime. Decisão rápida, tomada às pressas.

O jurado número oito discorda veementemente. Ele não tem certeza da inocência do acusado, mas tampouco tem certeza de ele é verdadeiro autor do crime. Na dúvida, conforme orientação do juiz, opta pela absolvição. Princípio do indubio pro reo.

Os outros jurados discordam de tal decisão. Tudo, absolutamente tudo, aponta para a condenação do jovem. O jurado número oito começa, então, a dissecar os detalhes do crime, detalhes aos quais os outros jurados não deram a mínima atenção.

Quanto à testemunha que ouviu os gritos, o jurado número oito questiona: quem teria ouvido o quê, quando a cena do crime era tão perto da estação de trem, que fazia um barulho ensurdecedor? Tal testemunha teria dado um depoimento minimamente confiável?

A arma do crime, uma faca, também é questionada. Para a Promotoria, a faca teria sido comprada perto da casa do acusado, sinal indubitável de sua culpa no crime cometido. O jurado número oito questiona: uma faca é uma faca, pode ser comprada em qualquer lugar por absolutamente qualquer pessoa. A arma do crime é banal e não tem grande significado no contexto.

Outra testemunha, um senhor manco, teria cruzado com o jovem na escada, carregando o corpo do pai. O jurado questiona se um senhor manco teria mesmo agilidade para escutar um barulho e correr para a escada, a tempo suficiente de ver um assassino carregando um corpo.

À medida que os detalhes do crime vão sendo dissecados numa análise crua, sem emoções, os outros jurados vão revendo suas opiniões. Aos poucos, mais votos de “inocente” vão sendo proferidos, mudando completamente o destino do jovem acusado.

Para além do terreno da ficção, casos de erros ou dúvida sobre a autoria de crimes vez por outra vão parar nos jornais. Recentemente, em um caso ocorrido no Rio Grande do Sul, um exame de DNA tirou da cadeia um homem que ficou preso por dez anos por estupro, após condenação em primeira instância, decisão mantida em segunda instância (notícia aqui).

O caso: uma mulher sofreu violência sexual em sua própria casa. Um ladrão invadiu a casa da vítima para roubo e violentou a mulher. Dois homens foram presos por esse crime, roubo e estupro, em um concurso de agentes que nunca existiu. Um deles era acusado de outros estupros. O outro teria sido reconhecido pela vítima em audiência. A única prova contra o cidadão que viria a ser inocentado, passados dez anos preso por condenação em primeira instância, seria esse reconhecimento da vítima, visto que o exame de DNA apontou para o outro acusado, preso como coautor. Dois homens presos pelo mesmo crime, quando apenas um era o verdadeiro culpado.

Antes de se atacar a vítima por seu erro, devemos ter em conta de que não deveria se jogar sobre os ombros de uma mulher violentada em sua própria residência a responsabilidade de apontar o criminoso com um juízo de certeza. Se existe o exame de DNA para apontar com maior grau de certeza o criminoso, o erro não foi da vítima, uma mulher traumatizada, e sim de um processo penal que não funcionou como deveria. Soa um tanto quanto absurdo pensar que, mesmo com um exame de DNA apontando um único culpado, acusado de outros crimes semelhantes, outro homem foi preso e condenado em primeira instância.

Muito já se falou sobre a questão de reconhecimento facial de um criminoso. Pedir a uma vítima, traumatizada na maior parte das vezes, para apontar um rosto, entre dezenas de outros, que teria sido o rosto do criminoso responsável pelo seu sofrimento, é incrivelmente falho e sujeito a erros consideráveis. As provas do processo penal devem ser mais robustas para uma levar alguém a responder por crime, mais ainda para ser condenado.

Sobre reconhecimento de pessoas, dispõe o CPP:

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto  no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

Art. 227.  No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável.

Art. 228.  Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.

Sobre perícia, dispõe o artigo 182 do Código de Processo Penal:

Art. 182. O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte.

A questão de livre apreciação de provas pelo juiz é defendida e atacada na mesma proporção. Quem defende a livre apreciação de provas defende a ampla liberdade decisória do juiz na apreciação da causa. Defende que o juiz não deve ser um autômato preso a provas técnicas. Quem a ataca defende que tal artigo dá uma margem de discricionariedade muito grande para o juiz decidir o que bem entender, relativizando o peso das provas dos autos.

A questão é profundamente controversa. Toda perícia está sujeita a falhas, obviamente. Em caso de dúvidas sobre a perícia, o próprio CPP autoriza a sua repetição e realização por outros técnicos. Deixar o resultado de uma prova técnica de lado é um excesso de poder nas mãos do juiz criminal.

Por fim, por mais que juízes e promotores sejam humanos e sujeitos a falhas, deve ser dada mais atenção à questão das provas no processo penal. Já que os princípios de presunção de inocência e indubio pro reo cada vez mais se tornam mera retórica, os atores do processo penal devem ter mais atenção aos fatos antes de se decidir sobre a liberdade ou condenação de um acusado.


REFERÊNCIAS

Doze homens e uma sentença. 1957. Título original: 12 angry men. Drama. Direção: Sidney Lumet. Roteiro: Reginald Rose. Elenco: Henry Fonda, Lee J. Cobb, Martin Balsam.  Versão de 1997: Direção: William Friedkin. Roteiro: Reginald Rose. Elenco: Jack Lemon, George C. Scott, Hume Cronyn.


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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