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Escuta telefônica não exige ordem judicial para ser efetivada

A Lei 9.296/96 veio à lume com o objetivo de conferir eficácia ao artigo 5º, inciso XII, da Constituição da República, que permite o afastamento do sigilo das comunicações nos seguintes termos:

é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Note-se que da interpretação do texto constitucional nós podemos concluir, na linha da doutrina constitucionalista, que não há direito fundamental absoluto[1], razão pela qual, observados os requisitos legais, o sigilo das comunicações telefônicas poderia ser afastado.

Questiona-se, todavia, qual seria o alcance da Lei 9.296/96, haja vista que seu artigo 1º menciona o termo “interceptação de comunicações telefônicas de qualquer natureza”.

Como advertem GOMES e CERVINI (1997, p. 78-79), a palavra “interceptação” não deve ser tomada em seu sentido lato ou corriqueiro como ato de interromper, obstaculizar, deter ou cortar, mas sim no sentido de “captar” a comunicação telefônica, “tomar conhecimento, ter contato com o conteúdo dessa comunicação.”

Outro aspecto importante é que na interceptação está ínsita a presença de um terceiro que não seja um dos interlocutores e que, ademais, não lhes seja de conhecimento.

Veremos adiante que quando um dos participantes da comunicação produz a gravação ou tem ciência dela, descaracteriza-se a figura da interceptação, havendo terminologias mais apropriadas (assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal no HC 75.338, sendo relator o Ministro Nelson Jobim).

No entanto, a Lei 9.296/96 somente tratou das chamadas “interceptações telefônicas, de telemática ou informática”, deixando, infelizmente, a descoberto, toda uma gama de situações que implicam gravações de comunicações e conversas, as quais são correntes e podem servir amplamente no interesse da apuração de fatos muitas vezes de suma gravidade.

Entre essas espécies de interceptação em sentido lato, destaca-se, neste estudo, a escuta telefônica, procedimento sensivelmente distinto daquele regulamentado pela Lei 9.296/96.

Nesse caso, diferentemente da interceptação em sentido estrito, um terceiro capta conversa telefônica ocorrida em tempo real, mas com a ciência e consentimento de um dos interlocutores.

Assim, tendo em vista essa intervenção de terceiro em comunicação alheia, questiona-se a necessidade de ordem judicial para que essa medida seja implementada.

Antes, porém, de nos debruçarmos nessa questão, é imprescindível uma abordagem sobre o conceito de gravação clandestina, outra modalidade de interceptação telefônica em sentido lato.

Gravação telefônica (clandestina) é aquela em que, numa comunicação telefônica, um dos interlocutores (e não um terceiro), realiza a gravação da conversa sem o conhecimento do outro comunicador.

Já na gravação ambiental (clandestina), a comunicação objeto da captação se desenvolve diretamente entre presentes em um ambiente específico, público ou privado, sem o intermédio de qualquer meio de comunicação. Aqui, da mesma forma, a gravação é sub-reptícia, ou seja, realizada por um dos interlocutores sem a ciência dos demais.

Sobre a legalidade da fonte de prova obtida através da gravação clandestina (telefônica ou ambiental), a doutrina de forma pacífica se posiciona pela sua licitude nas hipóteses em que ela serve para comprovar a inocência de uma pessoa investigada/acusada ou quando o responsável pela gravação está sendo vítima de um crime (STF, Tribunal Pleno, HC 75.388/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 25.09.1998).

Fora dessas situações, há divergência sobre a licitude do procedimento, alegando-se, em linhas gerais, que a gravação sub-reptícia fere o direito à intimidade (entendendo ilícita a prova obtida através de gravação clandestina: STF, Tribunal Pleno, AP 307/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 13.10.1995).

Demais disso, o conteúdo da comunicação sofreria a influência daquele que a registra, sendo perfeitamente possível ludibriar o seu interlocutor, instigando-o a dizer algo de seu interesse, o que, de certa forma, ofenderia o princípio da isonomia e até da boa-fé.

Nesse contexto, a gravação clandestina poderia funcionar como uma espécie de flagrante provocado, onde o agente provocador (responsável pela gravação) acaba induzindo seu interlocutor a expor crimes cometidos ou pretensões criminosas.

Em nossa visão, o grande problema das gravações clandestinas, sob o ponto de vista estritamente jurídico, reside no fato de que o procedimento não está regulamentado por lei, o que, de certa forma, gera uma insegurança jurídica e pode dar ensejo a abusos que naturalmente desembocam na violação do direito constitucional à intimidade.

Não é outra a observação feita por GRINOVER (17/115):

(...) o legislador perdeu uma boa oportunidade de regulamentar o assunto, que normalmente vem tratado, no direito estrangeiro, juntamente com a disciplina das interceptações. O Projeto Miro Teixeira[1] cuidava expressamente dessas hipóteses, considerando lícita a produção da prova obtida mediante gravação clandestina, desde que utilizada para proteção de direito ameaçado ou violado de quem gravou a conversa.

Com efeito, parece-nos que a licitude ou não da prova obtida através desse expediente deve ser analisada casuisticamente, de acordo com o caso concreto. É claro que essa conclusão vai de encontro com o princípio da segurança jurídica, mas não enxergamos outra solução até que se regulamente a matéria.

Nesse sentido, o STJ considerou ilícita a gravação clandestina realizada pela companheira do acusado, com o objetivo de incriminá-lo pelo homicídio da vítima, pessoa com quem ela mantinha uma relação amorosa. Nos termos da ementa da decisão (STJ, 5ª Turma, HC 57.961/SP, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 12.11.2007):

tal prova (gravação clandestina) foi colhida com indevida violação de privacidade (art.5º, X, da CF) e não como meio de defesa ou em razão de investida criminosa, razão pela qual deve ser reputada ilícita.

Sem embargo dos posicionamentos contrários a utilização da gravação clandestina (ambiental ou telefônica) como meio de obtenção de prova, reiteramos que o tema deve ser discutido de acordo com o caso concreto, à luz do princípio da proporcionalidade.

Deve-se, portanto, perquirir se o sacrifício ao direito à intimidade da pessoa gravada de forma sub-reptícia se justifica diante da finalidade da gravação. Em outras palavras, é imprescindível que os bens jurídicos em confronto sejam sopesados, dando-se preferência aquele de maior relevância.

Demais disso, não podemos olvidar que a gravação de uma conversa não se confunde com a sua divulgação. É a divulgação que viola o direito à intimidade e não a gravação, afinal, as informações compartilhadas com a pessoa responsável pelo registro da comunicação ocorrem de maneira espontânea, sem qualquer tipo de coação ou engodo.

Sendo assim, havendo justa causa (juízo de proporcionalidade), tais informações podem perfeitamente ser utilizadas como prova. Ora, se uma pessoa pode prestar testemunho sobre uma conversação da qual ela fez parte, por que uma gravação do mesmo diálogo seria considerada ilícita?!

Nesse diapasão é o escólio de AVOLIO (2014, p. 143):

O que a lei penal veda, tornando ilícita a prova decorrente, é a divulgação da conversa sigilosa, sem justa causa. A “justa causa” é exatamente a chave para se perquirir a licitude da gravação clandestina. E, dentro das excludentes possíveis, é de se afastar - frise-se – o direito à prova. Os interesses remanescentes devem ser suficientemente relevantes para ensejar o sacrifício da privacy. Assim, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade, o próprio direito à intimidade e, sobretudo, o direito de defesa, que se insere entre as garantias fundamentais. Ocorrendo, pois, conflito de valores dessa ordem, a gravação clandestina é de se reputar lícita, tanto no processo criminal como no civil, independentemente do fato de a exceção à regra da inviolabilidade das comunicações haver sido regulamentada.

No mesmo sentido é a mais recente jurisprudência do STF (STF, 2ª Turma, AC 4036 Referendo-MC/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, Informativo 809, do STF), adotada no caso envolvendo a prisão cautelar do Senador Delcídio do Amaral:

Embora o art. 5º, LVI, da Constituição desautorize o Estado a utilizar-se de provas obtidas por meio ilícitos, considerados aqueles que resultem de violação às normas de direito penal, a gravação de conversa feita por um dos interlocutores sem o conhecimento dos demais é considerada lícita, para efeitos da aludida vedação constitucional, quando não esteja presente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação (...). A Turma asseverou que a conduta por parte do filho do candidato à delação premiada no sentido de gravar reuniões com o senador e demais participantes não revelaria violação à normativa constitucional. Portanto, não macularia os elementos de provas colhidos (...).

No intuito de reforçar a licitude da prova obtida através da gravação clandestina, podemos, ainda, nos socorrer de uma analogia com o artigo 233, parágrafo único, do Código de Processo Penal, que permite a utilização da comunicação epistolar sem o consentimento do interlocutor nos casos de interesse do destinatário:

As cartas poderão ser exibidas em juízo pelo respectivo destinatário, para a defesa de seu direito, ainda que não haja consentimento do signatário.

Advirta-se, todavia, que a gravação clandestina de conversa mantida entre policiais e pessoa investigada (interrogatório sub-reptício) é considerada ilícita por ferir o princípio constitucional e convencional da não autoincriminação – STF, 1ª Turma, HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001 (nemo tenetur se detegere).

É mister destacar, porém, que a referida garantia não se estende a terceiras pessoas eventualmente citadas na gravação (STF, 1ª Turma, HC69.818/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27.11.1992).

Superada essa questão, podemos retornar ao ponto central desse estudo, qual seja, a aplicabilidade (ou não) da Lei 9.296/96 às escutas telefônicas. Reiteramos que nesse caso, diferentemente do que ocorre na interceptação telefônica em sentido estrito, a captação da comunicação ocorre com ciência de um dos interlocutores.

O melhor exemplo de “escuta telefônica” se dá na investigação do crime de extorsão mediante sequestro, quando a Polícia Judiciária, com o conhecimento da vítima, capta os contatos telefônicos realizados pelos sequestradores.

De acordo com parcela da doutrina (LIMA, 2014, p. 524) e da jurisprudência do STF (STF, 1ª Turma, HC 80.949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001), às “escutas telefônicas” aplicam-se as regras da Lei 9.296/96. Para os adeptos desse posicionamento, portanto, trata-se de procedimento sujeito à cláusula de reserva de jurisdição.

Não é esse, todavia, o entendimento de AVOLIO (2014, p. 162), que, em linhas gerais, sustenta que o fato de um dos interlocutores ter ciência da intervenção de terceiro acaba implicando em um menor sacrifício ao direito à intimidade, razão pela qual, se impõe um tratamento jurídico distinto aos institutos (no mesmo sentido: SANCTS, 2014, p. 268).

De fato, parece-nos correto este entendimento, não estando as escutas telefônicas abarcadas pelo artigo 5º, inciso XII, da Constituição da República, o que, naturalmente, inviabiliza a aplicação da Lei 9.296/96, responsável por dar eficácia ao dispositivo constitucional. Na verdade, a escuta telefônica encontra guarida no inciso X, da CR, cláusula genérica que tutela a intimidade, nos mesmos moldes da gravação clandestina.

Com efeito, a legalidade desse meio de obtenção de prova também deve ser avaliada à luz do caso concreto, observando-se, para tanto, se há justa causa para a mitigação do direito à intimidade.

Ora, não vemos razão em tratar diferentemente institutos tão semelhantes quanto a gravação e a escuta telefônica. Isto, pois, nos dois casos o sacrifício da intimidade do interlocutor alheio ao procedimento é o mesmo, pouco importando o responsável pela captação sub-reptícia.

Temos a impressão de que o entendimento contrário ao aqui exposto se equivoca ao dar excessiva atenção ao responsável pela gravação, quando, na verdade, a questão deve ser avaliada sob o prisma do direito fundamental em jogo.

Desse modo, do ponto de vista estritamente jurídico, pode-se afirmar que não há qualquer diferença entre a situação em que um dos interlocutores efetua diretamente a gravação da conversa ou se socorre do apoio técnico de terceiro para esse fim (STJ, REsp 1.026.605/ES, 6ª Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 13.0602014).

Vale destacar que esse entendimento encontra apoio na jurisprudência do STJ, onde no julgamento do HC 161.053/SP, o Min. Jorge Mussi afirmou que

a escuta e a gravação telefônicas, por não constituírem interceptação telefônica em sentido estrito, não estão sujeitas à Lei 9.296/96, que regulamentou o artigo 5º, inciso XII, da Carta Magna, podendo ser utilizadas, a depender do caso concreto, como prova no processo.

Frente ao exposto, concluímos que as escutas telefônicas não são regulamentadas pela Lei 9.296/96, razão pela qual não dependem de ordem judicial para serem implementadas.

Destaque-se, todavia, que isso não significa que o procedimento não encontre limites na Constituição, cabendo ao magistrado competente a análise casuística da sua legalidade à luz do princípio da proporcionalidade.


REFERÊNCIAS

AVENA, Noberto. Processo Pena Esquematizado. ed. 6. São Paulo: Método, 2014.

AVOLIO, Luiz Francisco Torquarto. op. cit. p. 162.

GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl,  Interceptação Telefônica. São Paulo: RT, 1997.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. ed. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

SANCTS, Fausto Martins de. Interceptações e direitos fundamentais. In: AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho; BASTOS, Marcelo Lessa. Tributo a Afrânio Silva Jardim. ed. 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias – Teoria e Prática de Polícia Judiciária. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.


NOTAS

[1] Advirta-se, todavia, que há entendimento no sentido de que a proibição da tortura seria um direito absoluto e que não admitiria relativização. Nesse sentido: MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. ed. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p.778.

[2] Aliás, enormemente  preferível à Lei 9296/96 conforme se verá em vários aspectos (“in casu”, v. art. 12 do Projeto de Lei 3514/89).

Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

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