Artigos

Espécies de prisão preventiva e a Lei 12.403/2011 (Parte 2)

Por Francisco Sannini Neto

Na coluna anterior, analisamos a chamada Prisão Preventiva Convertida (art. 310, II, do CPP). Hoje continuaremos nosso estudo com mais uma modalidade prisional.

Prisão Preventiva Autônoma ou Independente (art.311 e seguintes, do CPP)

Essa espécie de prisão preventiva pode ser decretada pelo Juiz em qualquer momento da investigação ou do processo, desde que observados os pressupostos, os fundamentos e as condições de admissibilidade previstas no Código de Processo Penal. São legitimados ativos para solicitar essa medida: o Delegado de Polícia, o Ministério Público e o ofendido, durante a fase de investigações; já durante o processo, o Ministério Público, o assistente, o ofendido e o Juiz de ofício. Essa modalidade de prisão preventiva deve ser decretada em último caso, quando as outras medidas cautelares se mostrarem inadequados ou insuficientes, independentemente do contraditório.

Nesse ponto é interessante ressaltar que a prisão preventiva autônoma ou independente constitui a regra dentro da persecução penal. Sendo assim, na maioria dos casos ela só poderá ser adotada quando se tratar de infração cuja pena máxima cominada seja superior a quatro anos de prisão. Contudo, conforme mencionamos anteriormente, essa regra poderá ser excepcionada.

Explico, a Lei 12.403/2011 teve como um de seus objetivos adequar a prisão preventiva ao ordenamento jurídico como um todo. As condições de admissibilidade do artigo 313, do CPP, estão diretamente ligadas ao postulado da proporcionalidade. Para que seja decretada uma prisão cautelar, em  regra, é indispensável que se faça uma previsão da pena a ser aplicada ao final do processo. Não teria sentido a restrição da liberdade de alguém durante o processo, se ao seu final não poderia ser imposta uma pena privativa de liberdade. Afinal, o meio não pode ser mais grave do que o fim.

Partindo desse pressuposto, a nova Lei colocou a prisão preventiva em absoluta harmonia com o artigo 44 do Código Penal, que prevê as hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito. Não por acaso, há uma semelhança enorme entre os dois dispositivos.

Tanto na decretação da prisão preventiva, quanto na substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, o legislador estabeleceu de maneira expressa dois requisitos: o prazo de quatro anos de prisão (para a decretação da prisão preventiva, o prazo deve ser superior a quatro anos; já para a substituição da pena, o prazo deve ser inferior a quatro anos) e a não caracterização de reincidência.

Contudo, a maior parte da doutrina não se atentou para o fato de que os demais requisitos previstos no artigo 44 do Código Penal também devem ser levados em consideração no momento da decretação da prisão preventiva. Assim, crimes cometidos mediante violência ou grave ameaça e as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP, também servem de fundamento para a adoção desta extrema ratio, haja vista que tais fatos podem impedir a substituição da pena.

Ao final do processo o Magistrado deverá sopesar todos os requisitos do artigo 44 antes de conceder a substituição da pena. Assim, poderá ser aplicada uma pena privativa de liberdade mesmo em se tratando de punição inferior a quatro anos de prisão (se as circunstâncias judiciais forem prejudiciais ao réu, por exemplo).

Em situações excepcionais, portanto, com o objetivo de proteger os bens jurídicos previstos no artigo 282, inciso I do CPP e oferecer uma tutela adequada ao caso, também poderá ser decretada a prisão preventiva autônoma, independentemente da pena máxima cominada ao delito, com base no postulado da proporcionalidade (na sua vertente que determina a proibição de proteção insuficiente).

Conforme salientamos alhures, o próprio princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto na Constituição da República (art.5°, inciso XXXV), prevê que a lei não excluirá da apreciação do Judiciário qualquer tipo de lesão ou ameaça a direito. Deflui disto a necessidade de uma tutela adequada e efetiva sempre que houver alguma ameaça a direito. De fato, não se pode excluir do Poder Judiciário a possibilidade de enfrentar e neutralizar qualquer ameaça a um bem jurídico, sob pena de macular o referido princípio. Sendo assim, não seria lícito retirar do Magistrado a possibilidade de, no caso concreto, determinar a melhor e mais adequada proteção aos bens jurídicos indicados no artigo 282, inciso I do CPP, manietando-o diante de uma situação concreta de risco.

Admitir que o Juiz nada possa fazer em situações concretas e graves, em que há um risco sério a bens jurídicos relevantes, seria reconhecer a total incapacidade de o Poder Judiciário fazer frente ao risco que é a liberdade do imputado. Em outras palavras, o próprio Poder Judiciário estaria sendo cerceado em seu direito de prestar uma tutela adequada ao caso. Consignamos, ainda, que tal constatação tem um peso maior quando tratamos de Processo Penal, pois, afinal, é este o campo incumbido de tutelar os bens jurídicos mais relevantes da sociedade[1].

Com o objetivo de ilustrar esse embate entre o direito de liberdade e o direito de segurança, colacionamos as lições de Ingo Sarlet no sentido de que

“uma das implicações diretamente associada à dimensão axiológica da função objetiva dos direitos fundamentais, uma vez que decorrente da idéia de que estes incorporam e expressam determinados valores objetivos fundamentais da comunidade, está a constatação de que os direitos fundamentais (mesmo os clássicos direitos de liberdade) devem ter sua eficácia valorada não só sob um ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se cuidam de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar. Com base nesta premissa, a doutrina alienígena chegou à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui função axiologicamente vinculada, demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser dissociado, podendo falar-se, neste contexto, de uma responsabilidade comunitária dos indivíduos. É neste sentido que se justifica a afirmação de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comunitário prevalente, mas também e de certa forma, que contribui para a limitação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar preservado o núcleo essencial destes e desde que estejamos atentos ao fato de que com isto não se está a legitimar uma funcionalização (e subordinação apriorística) dos direitos fundamentais em prol dos interesses da coletividade, aspecto que, por sua vez, guarda conexão com a discussão em torno da existência de um princípio da supremacia do interesse público que aqui não iremos desenvolver . É neste contexto que alguns autores têm analisado o problema dos deveres fundamentais, na medida em que este estaria vinculado, por conexo, com a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais na sua acepção valorativa.”[2]

Em outras palavras, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais determina que o direito individual de liberdade seja exercido de maneira adequada e em consonância com toda a coletividade. O uso inadequado de um direito configura um abuso e deve ser reprimido pelo Estado.

Nesse contexto, se restar constatado que a liberdade de um indivíduo coloca em risco toda a coletividade, tal direito poderá ser suprimido em benefício de uma maioria, o que é respaldado, inclusive, pelo princípio da supremacia do interesse público. Todas essas afirmações encontram subsídio na função objetiva dos direitos fundamentais, que exige uma intervenção por parte do Estado em benefício da coletividade.

Essa concepção dos direitos fundamentais legitima a ideia de que o Estado se obriga não apenas a observar os direitos dos indivíduos em face das investidas do Poder Público, mas também garantir a proteção dos direitos fundamentais contra as agressões de terceiros.[3] Trata-se de um dever do Estado, que tem a obrigação de garantir a segurança dos indivíduos mediante a adoção de medidas diversas, como, por exemplo, a prisão preventiva.

Por tudo isso, reiteramos que, em regra, a prisão preventiva autônoma só poderá ser decretada quando se tratar de crime cuja pena máxima cominada seja superior a quatro anos de prisão. Excepcionalmente, contudo, será possível a sua adoção, independentemente da pena máxima cominada ao delito, quando restar comprovado que a liberdade de um indivíduo coloca em risco os bens jurídicos constantes no artigo 282, inciso I, do CPP e as demais medidas cautelares são insuficientes ou inadequadas para protegê-los.


[1] Nesse sentido, Andrey Borges de Mendonça. Prisão e outras Medidas Cautelares Pessoais.p.259.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br.

[3] MENDES, Gilmar. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Revista Diálogo Jurídico. Disponível aqui.

_Colunistas-FranciscoNeto

Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo