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Esquerda punitiva e a criminalização dos crimes sexuais contra a mulher

Esquerda punitiva e a criminalização dos crimes sexuais contra a mulher (Por Carlos Bermudes e Quézia Netto Carneiro)

O presente texto tem a proposta de provocar a reflexão quanto ao discurso punitivista encampado por setores da esquerda, e questionar sua funcionalidade em relação aos objetivos desejados pelo movimento feminista.

Na contramão das teorias garantistas, cuja sustentação epistemológica encontra-se firmada no Princípio da Intervenção Mínima, existem setores da esquerda que coordenam seus discursos a partir de concepções criminalizantes, clamando pela ampliação do poder punitivo do Estado em relação às suas bandeiras ideológicas. Trata-se, portanto, da “esquerda punitiva” (v. Maria Lucia Karam).

Em que pese as louváveis intenções por detrás das propostas criminalizadoras, cujo objetivo, via de regra, é a proteção de setores da sociedade que são afetados pela proteção deficiente de seus direitos fundamentais, é contraditório e insustentável, que os setores progressistas assumam o discurso punitivista, mesmo que para conformá-lo aos fins buscados pelos movimentos sociais que lutam pela igualdade e dignidade das minorias.

A esquerda punitiva

Via de regra, os defensores dos discursos criminalizastes da “esquerda punitiva”, sustentam suas demandas na idéia (princípio) de vedação de proteção insuficiente em matéria penal, cujo objetivo é demonstrar que a missão do direito penal vai além de garantir as liberdades públicas e individuais, por meio da restrição do arbítrio estatal, e que tal ramo do direito deve se preocupar também com a garantia da dignidade humana (de réus e de vítimas), por meio da defesa dos bens jurídicos indispensáveis a tal dignidade, pois a efetivação dos direitos fundamentais exige a sua proteção contra todas as agressões, provenham elas do Estado ou das pessoas.

Ocorre que, ainda que para proteção de grupos vulneráveis, o discurso da “esquerda punitiva” possui a mesma gênese destrutiva do discurso de “lei e ordem”, encampado por setores conservadores da sociedade.

Embora haja o reconhecimento quase hegemônico pela esquerda de que, o combate a criminalidade (e aqui dizemos criminalidade lato sensu), não se resolve com a decisão simplista e imediatista de aumento de repressão estatal, a “esquerda punitiva” permanece firme em suas convicções, depositando no direito penal a confiança para o enfrentamento de questões sociais absurdamente complexas.

Dentre os setores da esquerda, o movimento feminista apresenta-se como um dos responsáveis pelo endosso ao discurso punitivista, mormente em relação os crimes sexuais.

Tal afirmativa se evidencia pelo fato de que recentemente, através das Lei 13.718/2018, por meio do qual foram introduzidos novos tipos penais que “buscam” amparar as mulheres, constantemente vítimas de crimes sexuais. No entanto, esse expressivo aumento de forças repressivas no combate à violência sexual mascara uma patologia social com raízes bem mais profundas, de relações desiguais de poder, e de opressão de gênero, decorrentes de uma cultura patriarcal, que exerce dominação sobre os corpos das mulheres.

No tocante as recentes alterações do Código Penal, é evidente que o legislador procurou elaborar tipos penais que servissem de respostas a casos concretos de grande repercussão na mídia em anos anteriores, tais como o caso do Diego Ferreira de Novais (homem acusado de ejacular em passageira em transporte público), o que demonstra uma nítida sujeição ao populismo penal.

Mas ao contrario do que o senso comum acredita, a política de repressão não revela nenhuma diminuição na prática de crimes contra as mulheres, e isso fica evidenciado pelo fato do Código Penal trazer penas altíssimas, por exemplo, para o crime de homicídio praticado contra mulheres por razões de condição de sexo feminino (art. 121, §2º-A, CP) e ainda assim evidenciarmos taxas preocupantes de homicídios contra mulheres no país.

Fica evidente, portanto, que essas inovações legislativas decorrem do anseio social motivado pelo medo e a insegurança coletiva, que cresce exponencialmente com o estimulo da imprensa. As respostas rápidas ao problema dão a falsa impressão de que a “pena” (já reconhecida pela esquerda como mecanismo de manutenção e reprodução de poder de classe) é a solução idônea a ensejar o fim da criminalidade sexual.

Esse clamor por uma maior punição estatal por setores da esquerda acaba por legitimar o sistema penal, ocultando seu caráter de instrumento de dominação.

Por mais intensa que seja a repressão, a simples adoção da estratégia de criminalização como solução imediata, não impede e nunca impedirá que a prática da violência sexual contra à mulher subsista, de modo que tipificação penal se apresenta como inútil e de nenhuma utilidade para os objetivos finais do movimento feminista.

Conclusão

Portanto, os reais motivos da violência de gênero, ensejam uma análise mais aprofundada da realidade, pois há que se pensar em medidas a longo prazo, para um real enfrentando do problema, que conduzam numa transformação social das relações sexuais e de gênero, na construção de relações mais igualitárias, havendo o efetivo respeito pelos direito e garantias fundamentais dos indivíduos e a restauração dos ideais de emancipação de que originou-se a esquerda.


REFERÊNCIAS

DE ANDRADE, Vera Regina Pereira. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. 2005. Disponível aqui. Acesso em 19.02.2019

LIMA, Daniel Costa; Büchele, Fátima; Clímaco, Danilo de Assis. Homens, gênero e violência contra a mulher. Disponível aqui. Acesso em 19.02.2019.

ZAPATER, Maíra. Novos crimes sexuais na lei: avanço ou armadilha? 2018; Disponível aqui. Acesso em 19.02.2019.

KARAM, Maria Lucia. A Esquerda Punitiva, in Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade n.1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1º semestre 1996.


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