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O estado de inocência no júri: um grande desafio à defesa!

O estado de inocência no júri: um grande desafio à defesa!

O direito de defesa é uma garantia de legitimidade em todo processo criminal, além de instinto (ou pulsão, segundo Freud) natural de todos os seres humanos.

Entretanto, este direito de natureza constitucional será tanto mais efetivo, no Tribunal do Júri, quanto menos os jurados estiverem inclinados à tese acusatória.

É certo que o ideal, em todo e qualquer julgamento, é que os juízes estejam em posição neutra e de imparcialidade (os “olhos vendados” da deusa Têmis), e que as partes atuem com um equilíbrio de forças (a balança da Justiça deve estar imóvel, sempre nivelada), para que ao final seja imposta a resolução do caso (a espada no colo ou em riste).

Mas no júri, o fiel da balança sempre se dobra para a acusação.

Ninguém é ingênuo a ponto de desconsiderar que antes mesmo do início da sessão plenária o acusado já foi exposto, em maior ou menor grau, a um julgamento social (especialmente se o caso foi midiático), tendo seu nome e semblante retratados como o estereótipo do mal, já tendo sido execrado por parte da imprensa e seus inevitáveis juízos de valor.

E tudo isso se dá às avessas do princípio do estado de inocência, cada vez mais maculado pelas costumeiras manifestações públicas que, sem saber da completude dos fatos, clamam por “justiça” e “combate à impunidade”, e quando veiculadas aos quatro ventos pela forte divulgação dos meios de comunicação influenciam no resultado do julgamento.

Inverte-se a lógica legal e constitucional, de maneira que o acusado, presumido inocente pelo constituinte originário, passa a trazer consigo uma presunção de culpabilidade fundada em um senso comum que o constituinte desde sempre pretendeu afastar.

Esta figura mística desenhada pelos punitivistas de plantão – pela qual o acusado incorpora o mal em todas as suas formas – deve ser combatida no júri popular.

Por isso é que talvez a garantia mais importante da Constituição Federal (ao lado do princípio da legalidade e outros) é justamente o princípio da presunção de inocência, o qual impede que o acusado seja previamente considerado culpado, ao mesmo tempo em que atribui ao Ministério Público toda a carga probatória, e isto sem qualquer exceção.

Trata-se, referido princípio, de uma garantia política do cidadão que lhe assegura um prévio estado de inocência, servindo ainda como uma regra de julgamento por meio da qual a dúvida sobre qualquer fato relevante ao processo sempre se resolverá em favor do réu, funcionando, de mais a mais, como verdadeira regra de tratamento do acusado.

FERRAJOLI (2014, p. 506), expoente do garantismo, ensina que

esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado.

Embora o princípio do estado de inocência (ou de não culpabilidade) esteja devidamente agasalhado pela Constituição Federal (art. 5°, LVII), é inegável que, no Tribunal do Júri, sua aplicação é mitigada pelo senso comum incrustrado no imaginário popular de que ninguém é levado a julgamento se nada deve; se foi ao júri é porque, falam, é culpado.

Se não é culpado, por que está sendo julgado? Se não é culpado, por que foi (está) preso? Se não é culpado, por que ficou em silêncio e não quis se explicar em seu interrogatório? Se não é culpado, por que fugiu do local do fato? Se não é culpado, por que não se apresentou às autoridades? Se não é culpado, por que estava armado no dia do acontecido?

Estas perguntas retóricas, às vezes utilizadas de forma velada no discurso acusatório – e outras vezes nem tão dissimuladas assim – estabelecem a lógica simplória e reducionista de Leonel Brizola (“se algo tem rabo de jacaré, couro de jacaré, boca de jacaré, pé de jacaré, olho de jacaré, corpo de jacaré e cabeça de jacaré, como não é jacaré?”) que não tem outro propósito senão fixar uma presunção de culpa e tentar inverter a carga probatória.

In dubio pro reo? Não, in dubio pro hell.

Pode até parecer besteira, ou então um exagero, mas essa crença coletiva não pode ser menosprezada pelo advogado no júri popular, e igualmente seria um equívoco deixar de fazer um alerta, desde logo, sobre os nefastos reflexos desse pensamento emoldurado no imaginário das pessoas no que pertine aos julgamentos atinentes ao Tribunal do Júri.

Não se trata aqui de afirmar, de modo algum, que todo jurado carrega em si um desejo de ser carrasco e que precisaria apenas ser estimulado. O que se está a dizer é que, de acordo com a maior ou menor exposição dos jurados à imprensa sensacionalista, às versões policiais talhadas na primeira hora etc., o pré-julgamento é um efeito praticamente inevitável.

Em verdade, parcela significativa da população brasileira não possui uma formação cultural voltada ao respeito às garantias fundamentais, à proteção aos direitos humanos, pois assolada pelo discurso do medo e do terror se sente bem mais tranquila com o aforismo de que é melhor prevenir a remediar, e este é o ambiente mais propício à pré-condenação.

Esse fenômeno – se é que assim pode ser rotulado – é próprio do ser humano, sensorial por natureza, e que certamente vê com acentuada repulsa a prática dos assim chamados “crimes de sangue”, sentimento ainda mais intensificado se o acusado for detentor de péssima reputação social e ostentar, por exemplo, uma larga folha de antecedentes criminais.

Consequentemente, antes mesmo de começar a expor/apresentar às teses da defesa aos jurados o advogado precisará desconstituir esse estigma sobre o acusado (seja ele primário ou reincidente, e neste último caso a situação é consideravelmente mais difícil), que é provavelmente o primeiro grande desafio em se tratando de um tribunal do júri (NEWTON, 2015, p. 42):

Quando entramos no plenário, por exemplo, a primeira missão é, precisamente, tentar desfazer esta imagem preconcebida do “bandido”. Todos sabem que, no júri, o “réu entra condenado”. Por isso é necessário explicar que o João, o Jurandir, o Waldemar, enfim os acusados no processo, tem um rosto. Esclarecer que o julgamento decorre de um “devido processo legal” e que a pena deve ser proporcional ao fato praticado. E mais: as leis são as condições sob as quais os homens independentes uniram-se em sociedade, pois decididos a deixar o estado de guerra. E se há leis para punir, também há aquelas que disciplinam o processo, limitando o poder do Estado. 

É preciso relembrar ao Conselho de Sentença que o acusado é um ser humano, uma pessoa cuja conduta supostamente criminosa está sendo objeto de apuração, e que mantém consigo a presunção constitucional de inocência, a qual somente será elidida quando e se não restar uma única dúvida acerca da autoria e da materialidade do fato criminoso.

A par disso, também é preciso conscientizar os jurados de que a prova da culpa compete única e tão-somente à acusação, e que a lei fornece todos os instrumentos necessários para o parquet cabalmente demonstrá-la, e é por isso que eles – jurados – devem exigir do órgão acusatório que afaste qualquer dúvida razoável sobre a inocência do acusado.

Os jurados necessitam saber que devem deixar o plenário do júri (FERNANDES, 2017, p. 39),

com a consciência tão tranquila quanto ali chegaram; que a paz de espírito é o melhor de todos os travesseiros; que não devem carregar, para o resto de seus dias, o fardo de ter condenado um possível inocente, e isto porque o encargo probatório não lhes compete.

Insta ainda alertar ao Conselho de Sentença que o erro judiciário é a maior violência institucional que um inocente pode sofrer, e que não há contraprestação pecuniária que possa reparar o mal e esconder as cicatrizes incrustadas na alma de quem foi condenado sem provas e que ficou preso sem nada dever, que pagou por um mal que não praticou.

Aliás, o erro judiciário pode atingir a todos. O crime de sangue não é particularidade de uma classe social. Ninguém está livre de cometer um homicídio, e se o fizer tem o direito de tentar justificar sua conduta. Amanhã ou depois um amigo, um familiar ou nós mesmos podemos ser chamados a prestar contas perante o júri. Como seremos julgados?

A Escritura Sagrada nos ensina, no Evangelho de Lucas, que

o que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles” (C.6; V. 31), e no Evangelho de Mateus que “com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida que usardes para medir a outros, igualmente medirão a vós (C.7; V.1-2).

Eis, portanto, a medida da Justiça!

Salutar ainda deixar claro aos jurados que a opinião pública não deve jamais pressioná-los, pois são eles, os jurados, os representantes legítimos e soberanos da sociedade. Ademais, cabe também relembrar que, tempos atrás, um certo governador romano impulsionado pela inércia e comodismo de atender a maioria escolheu Barrabás a Jesus Cristo.

Não há (e nunca houve) no júri popular um duelo do bem (“incorporado pela acusação”) contra o mal (“corporificado pela defesa”). Há, sim, uma imputação que precisa ser provada, e que tanto será mais verdadeira quanto mais for capaz de resistir aos argumentos da defesa, sendo que em caso de dúvida prevalecerá a presunção de não culpabilidade.

Quanto mais firme a noção de estado de inocência estiver fixada como critério de julgamento para o Conselho de Sentença, menor será a possibilidade de que fatores alheios aos autos (ex: apelo midiático, layout do mobiliário do tribunal etc.) possam influenciar negativamente na decisão que será tomada com relação àquela questão penal em apreço.

O defensor – para quem, a princípio, a presunção de inocência é dogma inquestionável e que não demandaria, em tese, maiores reflexões – não pode jamais esquecer que o Tribunal do Júri é composto por juízes leigos e que levam suas vidas em áreas totalmente alheias a do Direito, pois se assim o fizer poderá estar pondo em risco todo o trabalho.

Numa época em que a própria Suprema Corte flexibiliza a garantia constitucional da presunção de inocência, o cuidado no Tribunal do Júri deve ser redobrado.


REFERÊNCIAS 

FERRAJOLI; Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

 FERNANDES; Ezequiel. Tribunal do júri: as impressões de um advogado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

NEWTON; Eduardo Januário. A defesa intransitiva de direitos: ácidos inconformismos de um defensor público. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.


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Ezequiel Fernandes

Advogado criminalista

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