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Estado liberal em Foucault e a expansão da figura de garante no direito penal

Estado liberal em Foucault e a expansão da figura de garante no direito penal

Conforme leciona Cezar Roberto BITTENCOURT (2012, p. 129), “o desenvolvimento do Estado está intimamente ligado ao da pena […] a uma concepção de Estado corresponde uma de pena, e a esta, uma de culpabilidade.”

Com base nisso, interessa compreender os efeitos que a lógica liberal (e, posteriormente, a neoliberal) trouxeram sobre o direito penal. Pretendo apontar aqui, de modo incipiente, um aspecto que intenciono estudar com vagar e profundidade ao final deste ano.

Aponta-se abaixo as consequências do liberalismo conforme são percebidas por FOUCAULT (2010), em seu curso no Collège de France, entre 1978 e 1979. Suas aulas estão reunidas na obra O Nascimento da Biopolítica.

Segundo o filósofo francês, o liberalismo precisa ser compreendido como algo muito maior do que simplesmente uma doutrina econômica ou uma forma de organização da política econômica do Estado.

O liberalismo foi, na visão do autor, o desabrochar de uma nova arte de governar, de um novo dispositivo geral de governamentalidade.

Significa dizer que não apenas a política se viu refém ou se viu penetrada pela economia política. Muito mais do que isso. Política e economia passaram a pertencer a uma díade, a formarem duas faces de uma mesma moeda.

Quais as principais consequências originadas por este novo dispositivo de governamentalidade?

Foucault aponta três. Sua percepção parte da concepção de que segurança e liberdade são os dois fundamentos sobre os quais se desenvolve a “economia de poder específica do liberalismo” (p. 96). A partir desta concepção, a operacionalidade governamental do liberalismo causa:

  • um incremento do perigo na vida dos indivíduos. Estes são postos constantemente em situações de perigo, são condicionados a ver a sua vida envolta em permanente perigo. Foucault afirma que nasce, no séc. XIX, uma cultura política do perigo, compreendendo toda uma literatura policial, campanhas de higiene e alertas sobre doenças e epidemias, receios causados pela teoria da degenerescência, etc. Há um estímulo para que os indivíduos se sintam constantemente em perigo. Nas palavras de Foucault (p. 97): “Não há liberalismo sem a cultura do medo”;
  • um formidável crescimento dos mecanismos de controle, condicionamento, coerção, com o aparecimento de grandes técnicas disciplinares, tomando o cotidiano dos indivíduos e incidindo sobre ínfimos pormenores de sua vivência. O esquema de vigilância e sanção (positiva e negativa – prêmio e castigo) se tornam a lógica geral das instituições de projeção (subjetivação) e controle social (escola, trabalho, hospital, prisão, etc.). O princípio geral sobre o qual se instituem todas as medidas é o da eficiência ou rentabilidade;
  • o surgimento da função governamental de produzir, insuflar, aumentar liberdades. A liberdade deixa de ser algo “natural” sobre qual o soberano precisa se restringir de tocar. Ela passa a ser um produto no e do Origina-se uma taxionomia da liberdade: liberdade de expressão, liberdade de consumo, liberdade política, liberdade para dispor de sua propriedade, etc. As crises com que se confronta o Estado liberal passam a ser primordialmente crises relacionadas ao “custo econômico do exercício das liberdades” (p. 98).

Este dispositivo de governamentalidade experimentará, em especial desde a década de 20 do século passado, uma série praticamente ininterrupta de crises.

As crises do capitalismo parecem estar entrelaçadas às crises do Estado liberal. O paradoxo desconcertante é que a solução ofertada para estas crises será, invariavelmente, o reforço dos princípios do liberalismo.

Quer seja através das medidas de desregulação operadas pelo neoliberalismo, quer seja (paradoxalmente) com as tentativas de geração de equilíbrio de liberdades do Estado de Bem-Estar Social, o alicerce sobre o qual se desenvolverá a história da governamentalidade a partir do séc. XX pode ser visto como um prolongamento do dispositivo de gerenciamento de liberdades, inaugurado pela economia política como engrenagem motriz do liberalismo.

O impacto que esta forma de se pensar o Estado, sua relação com os indivíduos e sua maior ou menor participação no gerenciamento de liberdades, traz sobre o direito penal, é de fundamental compreensão. As teorias preventivas giram todas em torno da perigosidade que orbita a base de legitimidade em que se apoia o liberalismo, em consonância com as consequências apresentadas por Foucault.

Pretendo encerrar destacando um dos efeitos específicos que isso acarreta sobre o direito penal: a expansão da atribuição da figura de garante (garantidor do bem jurídico) nas últimas décadas.

Vários autores apontam a expansão do direito penal nos crimes omissivos. Além disso, políticas criminais tentam cada vez mais coibir atos preparatórios. O direito penal econômico é campo fértil para esta análise.

O fato é que o direito penal tem sido ferramenta de preferência na tentativa do Estado em ofertar um véu de segurança em meio a sociedade de risco.

Medidas penais são propagadas como instrumento idôneo para eliminar, ou ao menos reduzir, os riscos de corrupção, sonegação, terrorismo, erro profissional (médico principalmente), desastre ambiental, crime cibernético, abuso sexual de crianças, violência doméstica e outros males presentes de forma indelével na contemporaneidade.

Encerro com a seguinte provocação: considerando o histórico de falência da prisão e do efeito preventivo da pena, largamente atestado em diversos estudos, pode-se sinceramente esperar que o direito penal atue como elixir capaz de trazer o alívio ou a esperança almejados por seu uso “antecipado”? Quais os riscos desta “aposta”?


REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. Lisboa, Portugal: Edições 70, LDA.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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