Histórias de um estagiário da Defensoria Pública na execução penal
Histórias de um estagiário da Defensoria Pública na execução penal
A defesa criminal é simplesmente recompensadora!
Não tem como explicar a sensação de poder ajudar e perceber a diferença que tu consegues fazer na vida de pessoas que não têm ninguém por elas, por vezes nem a família, da mesma maneira em que se encontra um apenado atendido por mim, como estagiário, que depois de 22 anos cumprindo pena (faltando pelo menos uns 12 para o término), contato algum tem com a família.
Contra tem o Estado, a sociedade e “os do contra”, já que, uma vez preso, pode até entrar no sistema sem facção, mas quando sair, muito provavelmente, inimigos vão existir, queira ou não, goste ou não.
Como estagiário, poder ver a lágrima rolar no rosto de uma mãe quanto tu fala que a pena que era de 12 anos, em apelação criminal, caiu para 5 anos e 09 meses, e que, pelo tempo em que ele se encontra preso, já será possível requerer a instrução da progressão de regime, não tem preço!
Como estagiário, ganhar o amor, carinho e amizade de crianças simplesmente pelo fato de saberem de que tu estás ajudando o pai, também não tem preço!
Isso me lembra uma parte até poética, que infelizmente desconheço a autoria:
Serve aos pequenos. Serás grande! Advogado de humildes e poderosos, advogado da pátria, construtor do direito, sacerdote da paz – hão de abençoar-te os filhos daqueles que tu salvaste. E os filhos dos teus filhos proclamarão com orgulho, que tu foste advogado! Confia em Deus. Não percas a esperança: mesmo que a força te cale de assaltada, sempre haverá um advogado, até a consumação dos tempos, a bradar o pregão da liberdade.
Mas o sistema penal também apronta as suas.
Como estagiário, atendi um senhor nordestino, deveria ter uns 60 anos, negro, sem casa, sem família.
Saiu de um estabelecimento penal (devendo para uma facção). Apresentando-se para cumprir pena em regime semiaberto, foi ameaçado e coagido, a fim de que continuasse trabalhando, já que devia, e como ele mesmo afirmou, era de confiança, pois era o encarregado de cuidar do dinheiro, e nunca faltou R$ 0,01.
Não querendo continuar no crime, e temendo pela vida, fugiu, direcionando-se no mesmo momento ao Foro, para apresentação, no intento de justificar sua fuga e ser autorizado a cumprir sua pena em outro local.
Chegou depois das 18h.
Não tendo local para ficar, dormiu ali mesmo, na frente do Foro. Ainda fazia frio em Porto Alegre.
Atendo ele no dia seguinte, às 15h, relata que ainda não tinha tomado café ou almoçado. É feita a reapresentação com justificativa, mas não me contentando com a situação, vou investigar por qual motivo foi condenado.
A denúncia narrava que, em um determinado mercado de Porto Alegre (desses grandes), o mesmo furtava 2 picanhas e uma faca da Tramontina que achou bonita.
A segurança percebeu a ação e passou o rádio para os demais colegas seus. Assim, assustado, o que agora encontrava-se na minha frente, ameaçou a mesma com a faca.
Pronto, configurado o art. 157, CP, não é mais possível a aplicação do princípio da insignificância, ou seja, condenado e jogado dentro do sistema penal.
Mas a mesma faca que ajudou a aumentar a pena, agora com o advento da lei 13.654/18, foi possível afastar a majorante, diminuindo quase 02 anos da pena, e bingo, o suficiente para, desde então, requerer a instrução da progressão ao regime aberto.
Afirmo que a carreira que vislumbro vive seus primeiros momentos, mas experiências com histórias felizes e tristes já não faltam.
Neste período, já atendi pessoas que foram condenadas por diversos crimes. Tráfico, furto, assalto, latrocínio, receptação e estupro (inclusive mulheres), posso dizer que esses delitos não são raros na Defensoria. Sequestro e assalto a banco, por sua vez, já não são tão habituais como os outros, apesar de também surgir.
Não obstante, também já atendi uma pessoa cumprindo pena por crime contra o consumidor e uma outra por crime contra a administração pública. Digo isso, pois não é o “cliente” geralmente atendido pela defensoria, já que normalmente esses conseguem contratar advogado particular.
Entretanto, também têm pessoas que ainda respondem um processo estando presas cautelarmente, ou seja, ainda não foram condenadas, e quem sabe, nunca serão. Algumas envolvidas em acusações midiáticas e que causam certa comoção.
Os apenados, de uma maneira geral, acabam sendo percebidos pela sociedade como se humanos não fossem, é possível que muito por influência da mídia. Nas palavras de (CARNELUTTI, 2017, p. 8):
E se, todavia, alguém percebe que são homens de verdade, parece-lhe que são homens de uma outra raça ou, quase, de um outro mundo.
E em outro momento faz uma abordagem, comparando os encarcerados com os gladiadores, e o “cidadão de bem”, como aquele que assisti ao espetáculo, que seria o drama penal.
Uma vez que o “cidadão de bem” gosta disso tudo, diverte-se, sente prazer, pois do contrário, a página policial não seria uma das mais lidas. Ainda que a mídia exerça influência no senso comum, é fato que o ser humano, no fundo, gosta do espetáculo e do enredo dramático na vida dos outros (CARNELUTTI, 2017, pp. 6-7).
E se os gladiadores que estão lá no meio lutando fossem nossos irmãos, não desceríamos correndo para salvá-los? Mas afinal, não somos todos irmãos? (CARNELUTTI, 2017, p. 10)
Assim, procurando relatar um pouco da vida de um estagiário na execução penal e, ao mesmo tempo provocar o senso crítico, deixo registrado que atuar na defesa criminal é recompensante e exultante, mas, por diversos motivos, não é para covardes ou fracos!
É saber que inocente ou não, todos têm direito à ampla defesa e um processo justo, que todos estarão contra o acusado, e que o defensor estará bem ali, ao lado do acusado, no último degrau da escada (CARNELUTTI, 2017, p. 27).
Contra tudo e todos, será a voz dos que não têm voz e a vez dos que não têm vez. Vai ouvir de parentes e desconhecidos que está louco, que Direitos Humanos não servem para…. “os cidadãos de bem”.
Vai ouvir de amigos/colegas as mesmas coisas, mas vai ser chamado por esses mesmos para auxiliar/socorrer em algo relacionado ao Direito Penal, como já aconteceu comigo. Aí é possível que mudem o pensamento. Ou que continuem mesmo assim, falando as mesmas coisas, como também já aconteceu comigo.
Mas mesmo assim vale a pena, e quem atua na defesa, estará sempre pronto para socorrer!
Finalizo com uma frase que lembro todos os dias e que provavelmente muitos também vão lembrar a partir de hoje:
Não quero ser admirado, nem amado, nem compreendido. Eu sou advogado criminalista e isso basta. Mais não digo. – Jader Marques
REFERÊNCIAS
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. 3. ed. Leme: Edijur, 2017.