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Estarão as prisões obsoletas?

Estarão as prisões obsoletas?

Estarão as prisões obsoletas é uma das obras escritas pela Professora Emérita da Universidade da Califórnia e Filósofa Angela Davis, refletindo sobre o sistema carcerário e sua função na atualidade nos Estados Unidos. Embora seus estudos possuam como parâmetro o sistema carcerário estadunidense, as reflexões realizadas por Davis retratam os sistemas penais e sua falência em totalidade.

A autora reflete sobre a necessidade de reforma do sistema prisional, os papéis de gênero, o complexo industrial prisional, bem como é ressaltada a importância da reflexão sobre um sistema que se mostra cada dia mais ineficaz. No tocante ao encarceramento em massa, aduz DAVIS (2018, p. 11) que a população dos Estados Unidos representa menos de 5% da população mundial, e, apesar disso, 20% da população prisional mundial está em território norte americano.

Em 1980, durante o mandato de Ronald Reagan, ocorreu uma expansão do sistema prisional norte-americano e a construção de inúmeras prisões, incluindo a Instituição para Mulheres do Norte da Califórnia, com inauguração entre os anos de 1984 e 1989, conforme ressalta DAVIS (2018, p. 13). É como se a prisão fosse algo natural e inerente ao convívio social, sendo inevitável para a manutenção da sociedade.

Estarão as prisões obsoletas?

Da mesma forma que a prisão é considerada por muitos como algo natural e inevitável, muitos se negam a refletir de forma crítica sobre os motivos e circunstâncias que se escondem por trás das prisões, as reais razões do encarceramento de milhares de pessoas, sendo em sua demasia pessoas com baixo poder aquisitivo e baixa escolaridade. Ressalta  DAVIS (2018, p. 16), portanto, que

a prisão funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais.

Isso porque os indivíduos que se encontram encarcerados se tornam os inimigos a serem combatidos, perdendo sua condição de pessoas e detentoras de direitos, devendo, portanto, ser excluídas do meio social. Ressalta ZAFFARONI (2017, p. 18) que

a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho.

Sendo considerados entes perigosos, são negados a esses indivíduos a própria condição de seres humanos, e como observamos na realidade do sistema prisional, é escancarada a realidade de exclusão social cotidianamente dessas pessoas. Direitos básicos como banhos, alimentação, sistemas sanitários adequados, visitas familiares e direitos de defesa tornam-se utopia, no mais equiparado processo Kafkiano.

Em certa passagem da obra Na colônia penal, demonstrando a preocupante realidade do direito de defesa negado a inúmeros acusados nos processos criminais, ressalta KAFKA (2019, p. 36):

 – Ele conhece a sentença?

– Não, disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações.

Mas o explorador interrompeu:

– Ele não conhece a própria sentença?

– Não, repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:

– Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne.

É como se o encarceramento tirasse a responsabilidade de reflexão social, produzidos pelo racismo, pelo capitalismo global e desigualdades sociais, tornando-se uma justificação para a manutenção e controle social, mesmo quando os dados sobre reincidência e aumento dos índices de violência, por exemplo, demonstram a completa ineficácia desse sistema.

Por meio de uma cultura do medo divulgada amplamente pela mídia, tal forma de repressão é justificada como forma de manter a segurança dos indivíduos, sem uma reflexão mais profunda sobre os reais motivos do aumento dos índices de criminalidade em sua totalidade. Ressalta nesse sentido CHAVES Jr (2018, p. 73):

por via reflexa, esses medos são potencializados por meio de imagens midiáticas que contribuem para a naturalização da expansão da resposta penal, tanto sob a perspectiva do senso comum cotidiano das pessoas quanto na formação do senso comum teórico dos agentes que atuam no Sistema de Justiça Criminal.

No tocante a questão racial, tanto no sistema carcerário norte americano como no brasileiro, resta clara a demonstração de um racismo estrutural presente na sociedade atual. Ressalta DAVIS (2018, p. 20) que um estudo realizado em 1990 pelo Sentencing Project, sediado em Washington, publicou a pesquisa sobre as populações norte americanas em cadeias e penitenciárias, em liberdade condicional ou em liberdade provisória, concluindo que um a cada quatro homens negros com idade entre 20 e 29 anos estava na prisão.

O estudo também revelou que o grupo com maior aumento da taxa de encarceramento foi o de mulheres negras, aumentando em 78%. No Brasil, a questão racial também traz pontos de reflexão importantes, observado que a maior porcentagem do sistema penal constitui-se de jovens negros, com baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo.

No tocante ao encarceramento feminino e observado questões de gênero no sistema prisional brasileiro, observa-se que a maior parte das mulheres presas no país possui relação com o tráfico de drogas, sendo de aproximadamente 68% dos casos.

Ressaltam nesse sentido MOREIRA; GOMES (2018, p. 71)

o envolvimento dessas mulheres com o tráfico, no entanto, não as liberta das amarras da construção social do gênero, pois mesmo na economia ilícita é perceptível que suas motivações para a prática de crimes e a sua atuação no interior das organizações acabam por ser reflexo dos padrões da divisão sexual do trabalho, além de reproduzi-la.

Isso pois, a relação dessas mulheres com esses crimes permite a manutenção de um sistema no qual os papéis de gênero são construídos socialmente, como permanecer em casa, cuidar da casa e dos filhos.

Outro aspecto importante na manutenção das prisões como principal forma de punição, analisando dentro disso questões estruturais sobre racismo e gênero, é a discussão sobre a privatização das prisões no século XXI.

Um exemplo claro disso, primordialmente no sistema norte americano, são das empresas como a CCA (Corporação de Correção da América) que recebe por pessoa encarcerada, logo, se há poucos indivíduos presos, seu lucro é claramente afetado.

Essa corporativização da punição transformou-se no que denomina DAVIS (2018, p. 40) de complexo industrial prisional. Ressalta a autora que o termo complexo industrial prisional foi introduzido por ativistas e estudiosos que visam contestar a crença predominante de que o aumento no índice de criminalidade era a principal causa do crescimento em demasia das populações carcerárias. Isso pois, dentro desse sistema corporativo, essa estrutura de gerenciamento nada mais é que uma fonte de lucros.

Nesse sentido, as grandes construções de prisões iniciadas na década de 80, contribuíram para a expansão desses sistemas de exclusões sociais, de indivíduos declarados pelo sistema capitalista como indesejáveis. Portanto, a obra é fundamental para refletirmos sobre os reais motivos do encarceramento, buscando alternativas para romper esse círculo vicioso de condenações e manutenção da violência, sem debater sobre os reais motivos que aumentam esses índices de criminalidade.

Dessa forma, ressalta DAVIS (2018, p. 22)

o desafio mais difícil e urgente hoje é explorar de maneira criativa novos terrenos para a justiça nos quais a prisão não seja mais nossa principal âncora.


REFERÊNCIAS

CHAVES Jr, Airto. Além das grades, a paralaxe da violência nas prisões brasileiras. 1. ed. Florianópolis, Tirant lo blach, 2018.

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018.

KAFKA, Franz. O veredicto/ Na colônia penal. Tradução: Modesto Carone. São Paulo, Companhia das letras, 2019.

MOREIRA, Anny Clarissa de Andrade; GOMES, Thais Candido Stutz. Diário de uma intervenção, sobre o cotidiano de mulheres no cárcere. Coordenação e organização: Priscila Placha Sá. Florianópolis: Emais, 2018.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal, Tradução Sérgio Laramão. 2. ed. Rio de Janeiro, Revan, 2007.


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Paula Yurie Abiko

Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal - ABDCONST. Pós-Graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em Direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE).

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