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Estelionato previdenciário, “despachantes” e a realidade social

Estelionato previdenciário, “despachantes” e a realidade social

No presente texto analisaremos o crime de estelionato previdenciário (art. 171, §3º, CP) a partir de um caso concreto envolvendo os conhecidos “despachantes” do INSS e a possibilidade de condenação de um beneficiário da previdência. O intuito é demonstrar que tal situação deve ser examinada a partir da realidade social instalada no nosso país para que se tenha uma real individualização da conduta imputada.

Resumidamente, o caso versa sobre um indivíduo, “Tício”, beneficiário da previdência social, que entregou seus documentos a um despachante, “Mévio”, responsável por dar entrada no seu pedido de aposentadoria junto ao INSS.

Após procedimento de investigação, o MPF apresentou denúncia contra ambos, afirmando que atuaram conjuntamente para fraudar os sistemas da previdência, com a inclusão de períodos de contribuição inexistentes para obtenção de benefício indevido.

Os elementos de prova constantes nos autos indicavam claramente que Tício foi ludibriado por Mévio; que o papel do primeiro foi apenas entregar a documentação para que o segundo verificasse se aquele possuía direito a algum benefício previdenciário; que o despachante, no intuito de obter vantagem pecuniária a partir do recebimento do benefício fraudulento de Tício, tratou de incluir períodos de contribuição inexistentes no cadastro da Previdência a fim de garantir que seu “cliente” possuísse período de recolhimento suficiente para obter o citado benefício e, ainda, que Mévio possui registros nos sistemas de gerenciamento de processos de participação em outros casos de estelionato previdenciário, inclusive com algumas condenações, onde constam o mesmo modus operandi aplicado junto à Tício.

Estelionato previdenciário

A despeito de já termos analisado detidamente o tipo penal do estelionato previdenciário em texto anterior, para fins de facilitação do entendimento, vejamos o que diz o crime de estelionato previdenciário:

Estelionato

Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.

[…]

§3º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

Como se pode perceber imediatamente, o caso se relaciona diretamente com a presença ou não de dolo por parte dos réus. No que concerne à atuação de Mévio, despachante, a presença de dolo na sua conduta parece ser inequívoca.

Com os documentos do contribuinte em mãos ele tratou de burlar os sistemas da Previdência com o intuito específico de obter vantagem do recebimento do benefício previdenciário. De forma simples e clara como ensinam os manuais de direito penal no nosso país, Mévio agiu livre e consciente no sentido de praticar a conduta tipificada no art. 171, §3º, do CP.

O “problema” está na análise da atuação de Tício. A presença de aspas não é ao acaso.  De uma análise detida à luz da dogmática penal, percebe-se que o caso é simplesmente solucionado com a ausência de dolo por parte do contribuinte.

Entretanto, esta não foi a compreensão do parquet, que tentou, inclusive, reconhecer a presença de dolo eventual na conduta. Como veremos à frente, a única solução possível ao caso é o reconhecimento da ausência de dolo por parte de Tício.

1. É necessário reconhecer que Tício, conforme os elementos de prova citados, foi tão vítima da conduta perpetrada por Mévio quanto o INSS. Ele, desprovido dos conhecimentos necessários para postular diretamente benefício previdenciário junto à autarquia federal, entregou nas mãos daquele sua documentação.

Quando o MPF afirma em suas alegações finais que o réu assumiu o risco de cometer o crime que lhe está sendo imputado ao entregar sua documentação a um terceiro quando poderia por si mesmo requerer o benefício previdenciário apenas demonstra o total desconhecimento do procurador do que realmente acontece no “mundo do ser”.

Ele se encapsula no “mundo do dever-ser” e esquece que na vida real nem sempre os indivíduos possuem o conhecimento necessário para postular seus direitos face a quem quer que seja. Por isso cada vez maior a importância dos atores jurídicos na desmistificação dos direitos mais basilares dos cidadãos.

A conduta de entregar documentos nas mãos de outras pessoas para que adotem trâmites legais é algo corriqueiro, principalmente quando envolve pessoas com baixo grau de conhecimento.

Em um país como o Brasil, marcado por uma abissal diferença entre classes sociais, aqueles que não possuem instrução suficiente para postular seus direitos diretamente ficam à mercê de pessoas como o despachante Mévio, que, valendo-se desta vulnerabilidade, atuam de maneira corriqueira na prática das condutas ora discutidas.

Não precisamos realizar grande esforço lógico ao analisar a situação que aqui se apresenta. O delito de estelionato pressupõe a prática de atos ludibriadores. Se o citado despachante tem a aptidão necessária para enganar o INSS, imagine Tício que, conforme frisado, não detém conhecimentos nem para requerer seu benefício junto à autarquia.

De acordo com os elementos de prova existentes, em nenhum momento Tício exigiu de Mévio que conseguisse de qualquer maneira a concessão de quaisquer benefícios previdenciários, muito menos concordou com alguma sugestão deste para que assim procedesse. Apenas entregou a documentação para saber se possuía ou não direito a algo.

Na verdade, foi Mévio que, sozinho, com o objetivo de obter vantagem ilícita, realizou a fraude nos sistemas do INSS.

2. Neste ponto, é importante que a defesa, durante seus trabalhos, constate: a) se houve qualquer investigação sobre a atuação do despachante na conduta imputada ao contribuinte e b) se houve pesquisas nos sistemas de gestão de processos sobre outros casos praticados pelo mesmo despachante que demonstrem um modo de agir que se enquadre à situação do caso concreto. Tais análises são fundamentais para o exercício de uma defesa efetiva e benéfica ao cliente.

Se verificadas e presentes as situações anteriores, pode-se chegar, no mínimo, a uma situação de dúvida sobre a prática do delito e nestas situações o provimento jurisdicional deve apontar para a absolvição do réu.

3. De mais a mais, felizmente, em decorrência do princípio da culpabilidade, a responsabilidade penal de cada indivíduo deve ser aferida na medida dos seus atos e de sua capacidade de compreensão da conduta ilícita que lhe é imputada.

Não se pode exigir que todos tenham a mesma constatação sobre uma suposta prática ilícita que viria a ser praticada pelo despachante sob pena de se querer realizar uma responsabilização objetiva.

A ideia de “ser-humano perfeito”, que tudo pensa e tudo prevê, há muito foi superada. Foi proposta por Jakobs dentro de sua teoria pura da imputação objetiva e logo foi superada pela total incompatibilidade entre tal concepção e as limitações cognitivas que atuam sob o cérebro humano.

Não há, portanto, o que se falar em dolo de Tício em “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”, conforme determina o caput do art. 171, CP. Se este não existe, qualquer condenação pela prática do crime de estelionato será ilegal e inconstitucional.

Para fins de imputação do fato à norma penal, é necessário que estejam presentes na conduta delituosa tantos os elementos objetivos, quanto os subjetivos exigidos pelo tipo penal em questão.

Em relação ao elemento subjetivo, a sua necessária observância na conduta que se analisa decorre da própria estrutura do nosso sistema de responsabilização penal, alicerçado no princípio da culpa e na responsabilização subjetiva do indivíduo, vedando a responsabilidade objetiva.

4. Pelo princípio da presunção de inocência, as condenações penais devem ser consubstanciadas em provas robustas, necessárias para sobrepor a culpa do agente à mencionada presunção constitucional de não culpabilidade.

No presente caso, além de não se ter prova robusta que confirme a atuação do contribuinte em conluio com o mencionado despachante, os elementos probatórios coligidos aos autos apontaram diretamente para a atipicidade da conduta do réu em razão da inexistência de dolo no fato que lhe é imputado.

Qualquer alegação contrária a tal constatação deve ser considerada mera presunção, suspeita, insuficiente a nível de grau de prova necessária para uma condenação, o que geraria um grave problema para a responsabilização subjetiva do contribuinte. Teríamos, sim, uma patente responsabilização objetiva, conforme destacado anteriormente.

O MPF tentou de maneira ilegal comprovar o elemento subjetivo da conduta de Tício através da entrega da documentação ao INSS. Afirmou que isso era o suficiente para atestar seu dolo, direto ou eventual. Entretanto, tal alegação não passa de uma tentativa esdrúxula de levar o magistrado a erro.

O fato de entregar documentação junto ao INSS não significa nada mais do que a mera entrega. A prova dos elementos da imputação infringida ao réu deve ser feita de forma direta, sob pena de violação da presunção de inocência através de uma condenação inconstitucional com base em meras presunções, que são flagrantemente violadoras do princípio da não culpabilidade.

5. No que concerne ao suposto enquadramento do elemento subjetivo do agente à hipótese de dolo eventual, também tal alegação não merece prosperar. Explicamos.

Primeiro, porque a noção de dolo eventual proposta pelo MPF é incorreta. A ideia de assunção de riscos para fins de dolo eventual conforme explicada pela doutrina brasileira destoa completamente do instituto do dolo eventual.

Como se falar na simples noção de assunção de riscos em uma sociedade em que praticamente todos os atos, consciente e inconscientes, praticados pelos indivíduos consistem em assumir riscos?! Basta pensar na direção de veículo automotor.

O que se quer demonstrar é que a expressão “assumir risco” induz a erro, uma vez que a simples assunção não significa a vontade do agente. Traduzindo: o que se tem é um elemento objetivo mascarado como elemento subjetivo.

Portanto, até mesmo para a configuração do dolo eventual, em obediência à sua lógica dogmática, é necessário comprovar que o agente quis, ex ante, assumir tais riscos conscientemente, sob pena de estarmos mascarando uma responsabilização objetiva (sem demonstração da vontade do agente) através de um elemento teoricamente “subjetivo”.

Logo, não se verifica no raciocínio esposado pelo MPF a comprovação desta vontade em assumir o risco, pelo contrário, o que se percebe é que o parquet apontou que Tício simplesmente assumiu o risco sem qualquer intenção.

Segundo, e também na mesma linha da necessidade de demonstração da vontade efetiva do agente na prática do estelionato, o crime do art. 171, §3º, do CP exige a demonstração do elemento subjetivo concernente ao dolo: vontade livre e consciente de (i) querer praticar a conduta ou (ii) assumir o risco de produzi-la.

A didática aqui é importante para que se perceba que efetivamente o legislador exigiu também a vontade e a consciência no ato de assumir o risco, o que não ficou comprovado no caso que se analisa. O MPF se limitou a dizer que o réu assumiu o risco e pronto, pretendendo uma condenação a qualquer custo, mesmo que importe na violação do sistema de responsabilização penal subjetiva vigente na nossa ordem jurídica.

6. No mais, também se constata que para a efetivação da fraude previdenciária é necessária tanto a inscrição ilícita na CTPS, quanto a alteração dos dados no CNIS. Em ambas as práticas não houve qualquer ingerência dolosa do contribuinte. Se realmente houve algum elemento subjetivo em questão foi a nível de culpa, a qual não é punida no crime de estelionato.

Portanto, como ficou demonstrado, a conjuntura social brasileira é elemento essencial para a correta e real visualização das condutas imputadas sob o manto do crime de estelionato previdenciário, principalmente sob a ótica do contribuinte, de maneira que a defesa deve sempre estar atenta a tais questões sob pena de falhar no exercício de sua atividade e, ao mesmo tempo, não garantir a efetividade do direito constitucionalmente garantido ao réu.


REFERÊNCIAS

VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. São Paulo: Marcial Pons, 2017.


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Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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