“Estupro culposo” e seletividade processual penal na valoração probatória
“Estupro culposo” e seletividade processual penal na valoração probatória
Daniela Portugal e Bruna Couto da Silva
Em setembro de 2020, foi proferida sentença absolutória no processo que tratava do suposto estupro cometido contra Mariana Ferrer. O fato teria ocorrido no final de 2018 em uma casa de festas de Florianópolis e a vítima, que até então era virgem, alegou que havia sido drogada, sendo incapaz de consentir com qualquer ato sexual.
Este processo gerou grande repercussão na mídia e ensejou o debate acerca da valoração do comportamento da vítima de delitos sexuais nos processos judiciais. O processo, por tratar de um delito sexual, é sigiloso, mas trechos da denúncia, das alegações finais e da sentença foram divulgados por veículos de comunicação. De acordo com essas informações, a exordial acusatória requereu a condenação do réu por estupro de vulnerável, figura prevista no art. 217-A, do Código Penal.
O caso foi marcado pela troca de delegados e promotores responsáveis pelo caso, de modo que, diferentemente da tese que orientou a denúncia, o Ministério Público, em sede de alegações finais, requereu a absolvição do acusado.
A tese absolutória fundamentava que o acusado não tinha como saber que a jovem não estava em condições de consentir, e que, por conta disso, não havia atuado com “intenção” de estuprar, tratando-se de “estupro culposo” (THE INTERCEPT BRASIL, 2020). Assim, dada a inexistência de previsão legal da forma culposa para o delito de estupro, concluiu o Ministério Público pela necessidade de absolvição do réu (MPSC, alegações finais, Proc. nº 0004733-33.2019.8.24.0023).
No dia 3 de novembro de 2020, o caso voltou a ganhar destaque em razão da divulgação de um vídeo com trechos de uma das audiências do processo. No trecho divulgado, o advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, na tentativa de comprovar a inocência de seu cliente, alegou que a vítima mentiu com objetivo de ganhar fama: “teu showzinho você [Mariana] vai lá dar no Instagram depois pra ganhar mais seguidores. Tu vive disso. Mariana, vamos ser sinceros, fala a verdade. Tu trabalhava no café, perdeu seu emprego, estava com o aluguel atrasado 7 meses, era uma desconhecida” – afirmou o procurador, que também exibiu diversas fotos da vítima a fim de inferir a imoralidade de seu comportamento e depreciá-la. (THE INTERCEPT BRASIL, 2020).
Diante das inúmeras perplexidades pertinentes ao caso, torna-se urgente o destaque de algumas questões, a fim de que sejam efetivamente compreendidas e, com isso, avaliadas criticamente.
Não existe “estupro culposo”
Nos termos do art. 18, do Código Penal, “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Significa que o tipo penal culposo é uma exceção legal e, portanto, nem todos os tipos penais dolosos contam também com a previsão da figura culposa. Examinando, especificamente, a previsão do crime estupro, observa-se que todas as formas previstas são dolosas – tanto o tipo incriminador definido no art. 213, CP, quanto o “estupro de vulnerável”, art. 217-A, CP, referido na denúncia.
O “dolo”, por sua vez, conforme a fórmula adotada pelo Código Penal brasileiro, abrange tanto o chamado “dolo direto”, aplicável às hipóteses em que o agente efetivamente quis o resultado, quanto o “dolo eventual”, para os casos em que o autor do fato assumiu o risco de produção do resultado. Em sua estrutura, o dolo agrega um elemento volitivo (vontade), e um elemento intelectivo (consciência), significando, em outras palavras, que o agente deseja realizar a conduta descrita no tipo incriminador, assim como compreende que a sua conduta incrementa um risco para o resultado (TAVARES, 2018, p. 266).
Avaliando, especificamente, o caso em debate, observamos que a denúncia imputou ao agente o crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A, CP, que criminaliza a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, punindo tal prática com reclusão de oito a quinze anos. O § 1º do referido dispositivo legal prevê a mesma pena para “quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
O estupro previsto no art. 213, CP, tem como elemento essencial do tipo incriminador a existência do dissenso da vítima – afinal, a prática consensual de conjunção carnal ou quaisquer outros atos sexuais traduzem situações princípio atípicas para o Direito Penal.
Entretanto, na modalidade prevista no art. 217-A, CP, a existência ou não de consentimento por parte da vítima é absolutamente irrelevante para incidência do tipo incriminador, uma vez que a figura se refere aos casos em que, dada a vulnerabilidade da vítima, o seu consentimento, se houver, é absolutamente inválido para fins de exclusão da responsabilidade penal. Esse olhar se aplica não apenas aos casos em que a vítima é menor de 14 anos, como também às situações nas quais a vulnerabilidade deriva da ausência de discernimento ou impossibilidade de oferecimento de resistência ao agressor, a exemplo do que ocorre nas situações de embriaguez.
Em suas alegações finais, o Ministério Público, sustentou ser “duvidosa a situação de vulnerabilidade da vítima”, além de referir a inexistência de dolo, sob o argumento de que “não restou comprovado que o acusado tinha conhecimento da suposta incapacidade da vítima”, uma vez que, “para a prática do estupro de vulnerável, seria fundamental o conhecimento da discordância da vítima ou de sua incapacidade para manifestá-la” (MPSC, alegações finais, Proc. nº 0004733-33.2019.8.24.0023).
A tese absolutória apresentada pelo Ministério Público de Santa Catarina refere-se, portanto, ao “erro de tipo”, situação em que o agente possui uma falsa percepção dos elementos fáticos que caracterizam a ocorrência do tipo incriminador, hipótese que, conforme art. 20 do Código Penal, impõe a exclusão do dolo, permitindo apenas a punição pelo delito culposo se houver previsão em lei, o que não seria o caso, dada a inexistência de previsão legal da forma culposa para o delito de estupro.
Seletividade processual penal e valoração probatória
Existem algumas peculiaridades que marcam e diferenciam o caso, merecendo aqui destaque. Mesmo antes da leitura das alegações finais e sentença absolutória, um dado chama atenção: a quantidade de páginas, 91 e 51 laudas, respectivamente – muito diferente da habitual “capacidade de síntese” referente a outros delitos, a exemplo do tráfico de entorpecentes, roubo e furto.
O cuidado no exame probatório e na abordagem das teses jurídicas, refletido na extensão das manifestações do Ministério Público e da 3ª Vara Criminal de Santa Catarina, infelizmente não é regra no processo penal brasileiro. Segundo Jordi Ferrer Beltrán (2007, p. 152), a escolha de um standard de prova mais ou menos exigente não advém de razões epistemológicas, mas políticas, o que diz muito a respeito do caso em análise. A experiência prática nos mostra ser impossível compreender criticamente o princípio fundamental do in dubio pro reo senão enquanto um preceito racializado. Significa dizer que, no processo penal brasileiro, uns acusados partem da presunção de inocência, enquanto outros têm como ponto de partida processual a presunção da culpa.
Essa distribuição desigual das garantias penais e processuais penais, varia, dentre outros fatores, conforme raça, classe social e gênero dos acusados – fatores que os tornam mais ou menos próximos do lugar social do qual emergem os próprios atores públicos responsáveis pelas funções de acusar, defender ou julgar, bem como os colocam próximos ou distantes dos estereótipos e estigmas que definem a imagem do “bandido”, do “inimigo”.
Essa disparidade processual, inexistente no processo como ele “deveria ser”, mas inegável nos processos criminais como verdadeiramente “são”, implica, dentre outras consequências, a desigual distribuição do ônus probatório. Em um processo criminal que tenha como standpoint a presunção de inocência, como efetivamente deve ser, a prova dos fatos narrados é incumbência exclusiva do Ministério Público.
Em casos tais, a dúvida efetivamente funciona como imperativo absolutório, como fez questão de lembrar o magistrado ao repetir a máxima liberal já ouvida por todo estudante de direito “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente” (3ª Vara Criminal de Santa Catarina, sentença, Proc. nº 0004733-33.2019.8.24.0023). Todavia, infelizmente não é essa a realidade dos inúmeros processos que fazem do Brasil a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700.000 presos – somados, um a um, a partir de corpos de pessoas majoritariamente negras e pobres.
Portanto, não surpreende a manifestação do Ministério Público de Santa Catarina, pugnando pela absolvição por ausência de dolo, mesmo quando reconhecendo, expressamente, estar
abalada a credibilidade do acusado em razão de sua primeira mentira (quando negou peremptoriamente ter se relacionado com a vítima), bem como da estranha dinâmica dos fatos que descreveu em seu interrogatório judicial (iniciativa da vítima quando pagava a conta, relato de confusão de seu nome pela vítima com outro homem; inocorrência de penetração e de ejaculação quando os laudos periciais atestam o contrário) (MPSC, alegações finais, Proc. nº 0004733-33.2019.8.24.0023).
A palavra da vítima, por sua vez, a despeito do entendimento do STJ, ainda hoje é reiteradamente desacreditada, especialmente nos delitos sexuais, nos quais a pessoa ofendida é, majoritariamente, pessoa do gênero feminino. Na prática, esse descrédito, associado à ausência de preparo para conferir um tratamento digno e respeitoso à vítima, reflete, por exemplo, em submetê-la a um depoimento em uma sala de audiências na qual ela se vê rodeada apenas por homens (MENDES, 2020, p. 130).
Antes que digam se tratar de infundada queixa feminista (“infelizmente, existe esse movimento feminista” – é o que se tem ouvido falar nas redes sociais), merece destaque a própria exposição de motivos nº 211, de 1983, referente à reforma da Parte Geral do Código Penal brasileiro, quando justifica a inclusão do “comportamento da vítima” como fator de dosimetria de pena no art. 59, CP:
fez-se referência expressa ao comportamento da vítima, erigido, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provação ou estímulo à conduta criminosa, como, entre outras modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes.
O referido dispositivo nos remete a um dos principais exemplos legais de culpabilização da vítima, naturalizando e legitimando as mais variadas práticas depreciativas contra mulheres e meninas vítimas de crimes sexuais, a exemplo das ilações ofensivas apresentadas pelo advogado de defesa do réu no caso, reiteradas ao longo da audiência de instrução diante da conivente omissão do magistrado e membro do Ministério Público. A conivência das instituições brasileiras diante dos casos de violência de gênero já foi apontada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Relatório nº 54/01, referente ao Caso 12.051, de Maria da Penha.
Naquela ocasião, a Comissão, em atenção às diretrizes da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”) concluiu que a violação, pelo Estado brasileiro, ao direito de proteção da vítima Maria da Penha seguia um “padrão discriminatório com respeito a tolerância da violência doméstica contra mulheres no Brasil por ineficácia da ação judicial” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Relatório nº 54, 2001).
Portanto, mesmo sem entrar no mérito referente à existência do crime, dolo do acusado ou possibilidade de resistência da vítima, é possível perceber como a seletividade penal é marcante no processo de aplicação da lei penal, definindo, por consequência, quando os elementos probatórios serão considerados suficientes para sustentar uma decisão condenatória, filtrando e condicionando de modo desigual (e, portanto, de forma notadamente racista e misógina) a aplicação da lei penal. Como bem concluem Zaffaroni e Pierangeli (2011),
na realidade, em que pese o discurso jurídico, o sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas mais que contra certas ações.
REFERÊNCIAS
ALVES, Schirlei. Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem. The Intercept Brasil. 03 de novembro de 2020. Disponível aqui. Acesso em 03 de novembro de 2020.
BELTRÁN, Jordi Ferrer. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007
BRASIL, Exposição de Motivos nº 211, de 9 de Maio de 1983, alteração do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível aqui. Acesso em 03 de novembro de 2020.
ESTADO DE SANTA CATARINA, 3ª Vara Criminal. Proc. nº 0004733-33.2019.8.24.0023
MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. 1 ed. São Paulo: Atlas, 2020.
Relatório nº 54, Caso 12.051, Maria Da Penha Maia Fernandes. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 4 de abril de 2001. Disponível aqui. Acesso em 03 de novembro de 2020.
TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. 1. Ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 9. ed, vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Leia mais:
Em vídeo, especialista analisa o caso Mariana Ferrer
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?