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Sua Excelência, o destinatário da prova

Sua Excelência, o destinatário da prova

Realizado o pregão, o advogado ingressa na sala de audiências, se dirige ao juiz e o cumprimenta com um aperto de mão, indo, a seguir, ocupar o assento de praxe. Era uma audiência de instrução em processo cuja acusação era de homicídio qualificado.

Observando que o Ministério Público não se fazia presença ao ato, o advogado, tão logo o magistrado abriu a solenidade, pediu a palavra para o registro de uma consignação.

O causídico requereu fosse registrado em ata que, tendo em vista não haver presença do Ministério Público à audiência, na hipótese de o juiz formular perguntas às testemunhas, entendia haver violação ao disposto no art. 212, caput, e parágrafo único, do Código de Processo Penal, e no art. 129, inciso I, da Constituição Federal.

A reação do magistrado foi imediata e revelada pela expressão de seu rosto. Sua fisionomia transfigurou-se. Sua face ficou crispada. Irrompeu uma brusca irritação, que ele não fez questão de disfarçar. Sua Excelência, com o tom de voz denunciado contrariedade, disse:

O senhor quer fazer essa consignação, mesmo eu sendo o destinatário da prova.

A resposta do advogado, buscando manter a elegância:

O senhor disse bem. É o destinatário, mas não é o gestor da produção da prova. Em todo caso, doutor juiz, eu apenas estou pedindo essa consignação. O mérito dela, se for o caso, será discutido em outra instância.

O que se seguiu no desenrolar da solenidade acabou por revelar a grave distorção de compreensão, pelo próprio magistrado, do seu papel em um processo criminal. As perguntas que Sua Excelência dirigia às testemunhas eram mais agudas e ferinas do que as que seriam formuladas por um arguto Promotor de Justiça.

Percebia-se bem que Sua Excelência estava dominado pelo que setores doutrinários têm denominado de “quatro mental paranoico”. O magistrado não estava apenas presidindo a solenidade de instrução probatória. Em verdade, o juiz despiu-se da toga e passou a perseguir a prova. Ele atuava como um interessado na obtenção de elementos de prova que confirmassem a versão apresentada na denúncia.

Com efeito, uma das salutares novidades introduzidas pela Constituição que se encontra prestes a completar seu 30º aniversário, foi a reformulação da Instituição do Ministério Público, à qual foram confiadas atribuições novas e, para isso, dotada de uma série de poderes.

No âmbito da atribuição criminal, o Ministério Público recebeu do legislador constituinte, como função institucional, a promoção, privativa, da ação penal pública, e logo no inciso inaugural do art. 129, o que indica a relevância da função.

Obviamente, quando a Carta Magna fala em “promoção”, não significa que a incumbência do Ministério Público se esgota com o oferecimento da denúncia. Ora, o Ministério Público é, merecidamente, uma das Instituições mais respeitáveis do país, sendo dotada de estrutura à altura de suas graves atribuições, integrada por membros e servidores selecionados em concursos públicos dos mais concorridos.

Em resumo, o órgão constitucionalmente incumbido da promoção privativa da ação penal pública conta com a estrutura necessária ao atendimento de suas funções, não podendo ser tratado como um hipossuficiente, de maneira que o Poder Judiciário supra suas pontuais deficiências.

O Ministério Público que se organize para estar presente a todas as audiências criminais.

Mesmo que o Ministério Público não contasse com a estrutura e o aparelhamento de que dispõe, ainda assim não se afiguraria legítimo que o juiz, exatamente a figura que deve avaliar se a prova produzida pelo órgão acusatório logra superar a presunção de inocência estabelecida pela Lei Maior, se invista na função de encarregado de produzir a prova cujo encargo de trazer aos autos incumbe à acusação.

Muito já se escreveu no sentido de que inexiste um sistema puro, ou seja, puramente inquisitório ou puramente acusatório. Importa mesmo é que, além da distinção das figuras do acusador e do julgador, suas respectivas funções não se misturem.

Em outras palavras, ao órgão acusatório incumbe gerir a produção da prova que conforte a versão constante da denúncia; e ao juiz compete, obviamente, julgar se a prova trazida ao processo pelo Ministério Público logra comprovar, livre de qualquer dúvida, a culpabilidade do acusado.

Em síntese, o juiz deve abandonar qualquer pretensão de protagonismo na instrução probatória de um processo criminal. A ele compete presidir o ato, assegurando paridade de tratamento às partes, podendo adotar postura suplementar na inquirição de testemunhas.

Cumpre observar que a alteração produzida no Código de Processo Penal pela Lei n.º 11.690/2008 deixa isso bem claro:

Art. 212.  As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.          

Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

Como se percebe, o texto legal é bastante explícito no sentido de que as perguntas serão formuladas pelas partes às testemunhas, cabendo ao juiz apenas, supletivamente, indagar sobre pontos não bem elucidados.

Portanto, o sistema introduzido pela ainda não bem compreendida alteração legislativa de 2008 – já se passaram dez anos! – não relega o juiz a um papel de expectador da produção da prova. Ao magistrado está reservado o papel de garantidor da observância das normas legais e constitucionais durante a instrução, podendo atuar complementarmente durante a oitiva de testigos, não mais atuando como protagonista da produção da prova.

A compreensão desse mecanismo evitaria situações como a da audiência mencionada ao início dessas linhas. Vale dizer, o juiz, não assumindo para si, função que não lhe compete, não correria o risco de se deixar dominar por aquele “quadro mental paranoico”, em que acredita cegamente na proposta acusatória e passa a buscar provas que a confirmem, descartando outras linhas de raciocínio e argumentação.

O destinatário da prova

Portanto, Sua Excelência disse bem, é o destinatário da prova. Mas não é o gestor da sua produção.

É possível uma licença para expressão mais crua:

cada macaco no seu galho.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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