Existe júri impossível?
Existe júri impossível?
Era um júri difícil, pra não dizer impossível. O acusado era réu confesso de ter desferido 57 facadas na vítima, no pátio de uma Penitenciária Estadual. Estava tudo filmado e logo após o homicídio o autor das facadas se entregou aos Policiais Penais para confessar o crime. Na audiência de custódia, foi categórico: matei para não morrer.
Logo pensamos: que legítima defesa é essa que o autor desfere 57 facadas? Evidente que não foi utilizado uso moderado da força, esvaziando, portanto, a tese de excludente de ilicitude.
Fui contratado apenas para realizar o plenário. No primeiro contato com o réu, ele me disse: Doutor, fiquei encarregado de matar a vítima e me falaram que se eu não fizesse, eu morreria também.
Mas eu nunca converso apenas sobre os fatos. Talvez por ser um utopista, acredito que os detalhes da vida de cada um são de suma importância para a criação de qualquer tese que seja.
Assim, comecei a questionar o réu acerca de situações de sua vida, como foi sua infância, onde ele nasceu, por quem foi criado. Enfim, perguntas relevantes para entender o ser humano que existe por trás do processo penal.
Foi uma conversa longa. Nela pude entender que se tratava, no passado, de um usuário de drogas, que foi preso preventivamente, inicialmente, por um crime de roubo, o qual lhe gerou uma pena de 6 anos em regime inicial semiaberto.
Quando ele me contou isso, lhe questionei o motivo de ele ter cometido o crime no regime fechado, não sabendo ele me responder.
Saindo da Penitenciária, a primeira coisa que fiz foi pesquisar os processos dele e verificar o motivo de ele não ter sido removido para o semiaberto, regime no qual ele deveria estar quando da ocorrência dos fatos.
Verifiquei, portanto, uma série de equívocos por parte das autoridades. Inicialmente, o juiz que o condenou não determinou a expedição, com urgência, do PEC provisório. Após muito tempo, com a formação do PEC provisório, o Magistrado intimou as partes para que se manifestassem, não determinando de ofício a remoção para estabelecimento penal compatível com seu regime de cumprimento de pena. Dada vista às partes, ninguém se manifestou quanto a isso. Após muito tempo, quando o apenado já havia implementado o lapso temporal necessário ao Livramento Condicional, a Defensoria Pública pleiteou o benefício, tendo o Ministério Público perdido o prazo para se manifestar.
Foi nesse meio tempo, quando o réu já não era para estar dentro de nenhum ergástulo público, muito menos um de regime fechado, que o crime foi cometido.
O Ministério Público sustentou que a tese de inexigibilidade de conduta diversa não poderia ser aplicável ao caso do réu, porquanto o acusado poderia ter procurado as Autoridades Públicas e relatar o caso.
Iniciei minha fala argumentando que apenas o outro pode falar por ele mesmo; que apenas poderia dizer como é estar preso e sendo ameaçado, quem efetivamente já esteve naquela posição.
Argumentei, ainda, que seria muita audácia por parte do réu acreditar que as Autoridades Públicas, aquelas mesmas que negligenciaram com a sua liberdade, poderiam fazer alguma coisa pela sua vida.
O Conselho de Sentença, entendendo que o sangue estava na mão do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Departamento de Administração Penitenciária de Santa Catarina, acolheu a tese defensiva com um sonoro 4×0.
Um simples diálogo a respeito da situação do réu, a qual não estava no processo, foi capaz de demonstrar os sucessivos erros por parte das Autoridades Públicas. E foram exatamente esses erros que absolveram o acusado.
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