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O expansionismo penal através da aplicação da cegueira deliberada

O expansionismo penal através da aplicação da cegueira deliberada

O expansionismo penal é um fenômeno impulsionado pelo processo de globalização, que na chamada pós-modernidade, fez com que os efeitos positivos e deletérios do desenvolvimento tecnológico, se expandissem com velocidade de modo global, e que no ambiente das relações supranacionais, os efeitos da criminalidade organizada se potencializaram, exigindo uma resposta penal globalizada e uniforme.

Nesse ambiente, a lavagem de capitais encontrou um campo fértil para se desenvolver com velocidade, fazendo com que, as nações se unissem na busca de uma solução capaz de promover uma tutela penal eficiente.

Esse processo impulsionou um movimento de uniformização da legislação penal, uma vez que a diversidade de diplomas legais e métodos diversos de combate e prevenção ao crime se mostrou ineficaz para enfrentar um fenômeno criminal que se articulava globalmente, exigindo, portanto, maior cooperação e uniformidade normativa a permitir uma tutela ágil e efetiva.

Sendo assim, nessa nova perspectiva, o movimento de uniformização do direito penal, tem permitido a transferência e utilização de institutos cunhados sobre bases principiológicas diversas, ou seja, a transferência de institutos de sistemas jurídicos incompatíveis, a exemplo da importação de tórias consuetudinárias próprias do sistema da “common law”, inseridas acriticamente em sistemas positivistas  da  “civil law”.

Nesse ambiente, surge no sistema jurídico brasileiro de base romano-germânico (“civil law”) a teoria da cegueira deliberada,  como meio de demonstração da tipicidade subjetiva, trazida é claro, a partir de experiências desenvolvida na Europa continental, copiando portanto, a jurisprudência espanhola e latino-americana.

A teoria da cegueira deliberada, conforme VALENTE (2017) também conhecida como teoria do avestruz, ignorância deliberada, cegueira intencional ou provocada, willful blindness, Ostrich Instructions ou doutrina da evitação da consciência (Conscious Avoidance Doctrine), possui diversas nomenclaturas, não sendo, portanto, unânime na doutrina nacional ou estrangeira o rótulo a ser empregado para melhor defini-la.

Tal construção teórica surge no século XIX na Inglaterra, mais precisamente nos idos de 1861, sendo a partir de 1887, estudado nos Estados Unidos da América do Norte. Sendo aplicada inicialmente no caso Regina vs. Sleep, em 1861, na Inglaterra, em um caso de malversação de bens públicos por ter embarcado em um navio um barril com parafusos de cobre que continha o símbolo real de propriedade do Estado (SYDOW, 2017).

Segundo a teoria, o agente, de modo deliberado, se coloca em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente e voluntária, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta, vale dizer, o infrator provoca o seu desconhecimento acerca do ilícito, de modo que sua ignorância deliberada passa a equivaler-se ao dolo eventual ou, até mesmo, à culpa consciente.

Para VALLÈS (2013), o sujeito poderia ter obtido determinada informação, porém, por razões diversas, optou por não adquiri-las, mantendo-se, intencionalmente, em estado de incerteza.

A teoria da cegueira deliberada foi aplicada pela primeira vez no Brasil, no caso emblemático do furto dos 175 milhões de reais do Banco Central de Fortaleza, no ano de 2005, em que os membros da quadrilha teriam se deslocado a uma concessionária e comprado 11 automóveis, totalizando aproximadamente um milhão de reais, pagos em espécie.

No caso, o juiz aplicou a teoria tendo em vista que, pelas circunstâncias – alta quantia de dinheiro em espécie – os responsáveis pela concessionária teriam ignorado esse fato bastante incomum para não saber a origem do dinheiro.

Foram então condenados com base no art. 1º, § 2º, inc. I da Lei de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98). Porém, foram absolvidos ao recorrerem ao tribunal, que entendeu não haver dolo direto na conduta (BONA JUNIOR, 2016).

O segundo momento de aplicação foi na Ação Penal 470, o denominado caso do mensalão, em que o ministro Celso de Mello admitiu a possibilidade do dolo eventual em crimes de lavagem de capitais com suporte na teoria da cegueira deliberada (BONA JUNIOR, 2016).

No entanto, é importante ressaltar a existência da incompatibilidade da teoria da cegueira deliberada com o sistema jurídico romano-germânico (“civil law”), sistema este que funda toda a sistemática jurídica brasileira, que é positivista, possuindo inclusive, através da legislação a definição dos pressupostos da imputação subjetiva na legislação, art. 18 do Código Penal brasileiro.

Nesse aspecto, há sérios riscos a segurança jurídica e ao principio da legalidade conforme Prado (2016) expõe com clareza o seguinte:

Isso porque é absolutamente impositivo ter-se em conta que o ordenamento jurídico brasileiro está assentado sobre o princípio da responsabilidade penal subjetiva, de previsão legal expressa (artigo 18, CP), sem nenhuma espécie de substitutivo, distorção ou menoscabo. Neste último caso, sua aplicação dá lugar a uma normativização judicial indevida, e ao arrepio da Constituição (artigo 5º, XXXIX, CF)

Nesse diapasão, é necessário acrescentar que a teoria da cegueira deliberada, é aplicada em um sistema jurídico consuetudinário, conforme a conveniência do caso concreto, deixando de apresentar um fundamento sistêmico pronto e acabado, uma vez que não há definição normativa do elemento subjetivo que defina o dolo e a negligência, diferentemente do sistema continental europeu e brasileiro.

Nesse aspecto acrescenta VALLÈS (2013) que, no sistema continental de imputação subjetiva, essa teoria é uma fissura que ameaça a solidez das bases liberais, demonstrando assim, que promove uma flexibilização na responsabilidade subjetiva, aumentando a possibilidade, inclusive, para imputar responsabilidade a quem de fato não possui.

Portanto, é evidente a incompatibilidade dessa teoria com o sistema jurídico de imputação subjetiva existente no Brasil, possuindo múltiplos obstáculos dogmáticos, sobretudo na perspectiva da teoria do crime consagrada no Código Penal brasileiro, exigindo para sua aplicação, a redefinição do conteúdo do dolo e da negligencia, redefinido o tipo subjetivo.

Nesse sentido, conforme Vallès (2013) apresenta o quanto discutido no direito espanhol, que a única saída para o aperfeiçoamento dessa teoria seria, refundar as bases do sistema de imputação subjetiva, definindo os contornos do dolo e da culpa e, por conseguinte, tornando-se possível o reconhecimento de outras modalidades daquela imputação.

Assim, o princípio da legalidade é flagrantemente violado com a aplicação da cegueira deliberada, pela flexibilização trazida na constatação do elemento subjetivo.

Ademais disso, explica VALENTE (2017) que essa teoria também promove a violação dos princípios da lesividade e da ofensividade, eis que tais vedam a criminalização de condutas meramente morais ou inadequadas socialmente.

No entanto, a aplicação da teoria da cegueira deliberada revelou-se flexível e, ao mesmo tempo, fértil para a determinação da responsabilidade jurídico-penal no sistema consuetudinário, respondendo às necessidades criminológicas, permitindo assim, com a importação para o sistema brasileiro (civil Law), a ampliação da responsabilidade penal, e por consequência a deformação da dogmática penal.


REFERÊNCIAS 

VALLÈS, Ramon Ragués i. Mejor no saber: sobre la doctrina de la ignorância deliberada em derecho penal, 2013.

VALENTE, Victor Augusto Estevam. Aplicação da cegueira deliberada requer cuidados na prática forense. Disponível aqui.

BONA JUNIOR, Roberto. É preciso discutir teoria da cegueira deliberada em crimes de lavagem. Disponível aqui.

PRADO, Regis Prado. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016

SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2017.

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